NFJ#459 🍂 O caso do tio Paulo, o jornalismo e a IA
Uma lupa na vasta programação de Perugia | Como usar IA para fazer cobertura melhor | Estudantes de jornalismo ajudam a combater desertos de notícias | Dados ambientais em foco
Olá!
Moreno aqui, abrindo mais uma newsletter, mais uma sexta-feira de nossas vidas. Maio tá aí, gurizada. Life moves pretty fast, já nos disse Ferris. La vida no para, no espera, no avisa, como vive nos dizendo Drexler. O que vocês tão fazendo das suas vidas?
Lo que siento, pienso y reclamo.
Antes, saibam, no blog dos nossos parceiros da serverdo.in, as vantagens de adotar estratégias de SEO.
Hoje é Lívia (LV), Giuliander (GC), Lara Ely (LE) e eu (MO) assinando os tópicos.
🍂 Uma lupa na vasta programação de Perugia. Passei algumas horas mergulhada nos vídeos do International Journalism Festival, realizado na semana passada em Perugia, na Itália. Todo o conteúdo está disponível (em inglês) e super organizado no site. Se você tem um tempinho no fim de semana, vale a pena filtrar por assunto ou por palestrante. Mas, se a vida está corrida, há alguns resumos bacanas com destaques do que rolou no evento. O Reuters Institute focou no futuro das notícias, e é claro que apareceram os painéis sobre IA e plataformas. O journalism.co.uk destacou a ascensão dos aplicativos de áudio – o app New York Times Audio, por exemplo, foi baixado mais de um milhão de vezes nos primeiros seis meses. E olha que é exclusivo para assinantes. Neste post no LinkedIn, Antonio Zappulla, da Thomson Reuters Foundation, salientou que, à medida que a IA aumenta a desinformação no contexto de eleições, os jornalistas precisam estar um passo à frente das táticas e ferramentas.
Meu olhar pelo conteúdo do festival foi menos tecnológico, à procura de algo relevante para trazer para vocês. E acho que encontrei. A mesa “Construindo o futuro do jornalismo investigativo: qual é a responsabilidade dos líderes de notícias?” contou com a participação de Tracy Weber, editora da ProPublica, organização norte-americana sem fins lucrativos. Ela contou os bastidores da reportagem “America’s Dairyland: risking workers’ lives for the milk we drink”, que denunciou abusos e falta de segurança de trabalhadores, grande parte imigrantes, nas fazendas de leite no meio-oeste dos EUA. Tudo começou com a morte de uma criança em uma fazenda leiteira de Wisconsin. A equipe sabia que a maioria dos trabalhadores fala espanhol, mas sabia também que a ProPublica “deveria fazer mais do que apenas traduzir o material”. Era importante que a reportagem chegasse até os trabalhadores, que poderiam relatar outros casos de más condições de trabalho e riscos de vida.
As duas repórteres destacadas para o trabalho – Melissa Sanchez e Maryam Jameel – falam espanhol fluentemente, pois são filhas de imigrantes. Primeiro, elas descobriram que os trabalhadores costumavam usar o TikTok “fazendo vídeos bem-humorados de si mesmos dançando em salas de ordenha de leite”. Por conta disso, elas também se tornaram ativas na plataforma. Outra ação para chegar até as fontes de trabalhadores foi participar de programas de rádio locais, pois eles costumam usar esse canal para diversas reclamações. Elas também visitaram mais de 60 negócios locais que atendem clientes de língua espanhola e penduraram panfletos em busca de fontes. A história da morte do menino, após investigada pelas repórteres, revelou um erro de tradução do delegado (!), que culpou de forma equivocada o pai pelo atropelamento do menino. A reportagem foi transformada em um livreto, distribuído em lojas e restaurantes latinos em todo o estado. Os materiais incluíam um QR code que levava as pessoas para a versão em áudio da história.
Na página especial há diversas matérias sobre o assunto e algumas delas destacam o impacto do trabalho da ProPublica. Entre eles, a aprovação de um fundo de 8 milhões de dólares para alojamento de trabalhadores e medidas para melhorar o acesso aos serviços governamentais para pessoas que não falam inglês. Este texto conta em detalhes todos os bastidores, que mostram a complexidade de se fazer um jornalismo investigativo de excelência, bem como seus resultados. (LV)
🍂 O caso do tio Paulo, o jornalismo e a IA. A notícia mais lida da semana entre 15 e 21 de abril no Brasil foi certamente a da mulher que levou um homem morto em uma cadeira de rodas para tentar retirar um empréstimo numa agência bancária de Bangu, na zona oeste do Rio de Janeiro. O caso, por si só, já era bizarro, e a mídia não perdeu a chance de conquistar muitos cliques a mais a partir de toda a repercussão que ele teve nas redes sociais com ajustes na forma como passou a apresentá-lo ao longo da semana. Como nossa colega Lívia Vieira escreveu em coluna no objETHOS, os veículos que usaram "tio Paulo" nas manchetes "conseguiram um bom ranqueamento no buscador (do Google), mas abriram mão do poder de nomeação [...]. Cederam a autoridade do jornalismo, que deve se guiar por uma ética, à miríade de conteúdos e memes que circulam nas redes sociais sem escrutínio". Para completar, na opinião de Pedro Burgos, coordenador de inteligência de dados no Insper, demorou quase uma semana para ocorrer um esforço de reportagem que abordasse mais nuances e desse conta de mais contexto sobre o assunto (no caso, da equipe do Fantástico, da Globo): "O impulso dos portais — como foi possível ver nos primeiros dias — foi cobrir da mesma forma que o tribunal das redes sociais fez: buscando mais detalhes sórdidos para pintar um cenário ainda mais macabro, 'sensacional'. A culpa e a frieza da mulher já haviam sido estabelecidas, então o viés de confirmação entrou forte". (GC)
🍂 Como usar IA para fazer uma cobertura de melhor qualidade. No mesmo post do Linkedin, Burgos sugeriu que o ChatGPT poderia ter ajudado os jornalistas a melhorarem a qualidade da cobertura do caso. "Muitos jornalistas foram treinados a explicar temas complexos de forma simples, de forma que 'todo mundo possa entender'. Essa parecia uma das principais missões da profissão. Só que hoje o desafio é um pouco diferente: na internet, as pessoas parecem já ter explicações simples para tudo, que se encaixam em narrativas pré-estabelecidas de mundo. Então deveria ser trabalho da mídia, em grande parte, complexificar as coisas — dar mais nuance, evitar respostas fáceis", escreveu. E ele parece ter razão. Burgos compartilhou o link de uma conversa com o LLM onde pede para que ele se comporte como "uma editora de jornal experiente, que sempre faz perguntas que permitem explorar outras formas de ver uma pauta". E, veja só, a "editora ChatGPT-4" sugeriu muitas questões pertinentes que poderiam ter auxiliado os grandes portais de notícias a fazerem uma cobertura de maior qualidade sobre o caso do homem morto que foi levado a uma agência bancária para retirar um empréstimo (NFJ não se curva ao SEO, rs). Enfim, não foi a primeira e provavelmente não será a última vez que o jornalismo será engolido pelo SEO. E, na Atlantic, alertam que o LLMO (!) pode muito bem vir a engolir toda a internet como a conhecemos. Acho que eu não quero mais falar sobre isso (rs). Vou deixar uns links aqui embaixo sobre IA e jornalismo para você se deprimir sozinho, se quiser:
IA ameaça destruir negócios jornalísticos, mas licenciamento é esperança, diz presidente de fundo de mídia (Folha de S. Paulo);
Como os chatbots de IA generativa respondem quando pedimos pelas últimas notícias (Reuters Institute);
A primeira editora de estratégia de IA do Washington Post fala sobre LLMs na redação (Nieman Lab);
O Washington Post está desenvolvendo uma ferramenta de respostas alimentada por IA e baseada em sua cobertura (Technical.ly);
O que há de errado com os robôs? Uma pesquisadora de Oxford explica como podemos ilustrar melhor as notícias sobre IA (Reuters Institute);
A estratégia do Axios para fazer frente à revolução que se avizinha (Laboratorio de Periodismo);
Jornalistas se queixam de que não recebem capacitação sobre o uso da IA em suas funções e da falta de diretrizes claras (Laboratorio de Periodismo);
Como a desinformação criada pela IA afeta o que pensam os consumidores sobre as eleições e as marcas (Digiday);
Do Jesus camarão aos falsos autorretratos, as imagens geradas por IA se tornaram a mais recente forma de spam nas redes sociais (Nieman Lab). (GC)
🍂 Estudantes de jornalismo podem ajudar a combater desertos de notícias. E se estudantes de jornalismo – usando a estrutura de suas escolas – ajudassem a combater desertos de notícias, realizando a cobertura de locais e populações subrrepresentadas no noticiário? Um artigo publicado em 2022 na Journalism Studies analisou o trabalho de três startups de estudantes de jornalismo que se propuseram a servir as regiões metropolitanas de Pittsburgh e de Boston e de Eudora, uma comunidade rural no Kansas. Os jornais digitais foram criados especificamente para preencher lacunas não somente geográficas, mas também de populações historicamente ignoradas pelo jornalismo – e aqui o paper propõe um tensionamento interessante na definição de news deserts: os autores afirmam que o problema é geralmente vinculado a questões contemporâneos enfrentadas pelo jornalismo, como as crises no modelo de negócio ou mesmo a crise financeira de 2008, nos EUA, ignorando que certas comunidades nunca foram servidas apropriadamente pelo jornalismo. "Este é um outro grande fator de crise para o jornalismo local", afirmam Teri Finneman, Meg Heckman e Pamela Walck, autores do artigo. A análise foi feita a partir de entrevistas com 18 estudantes de jornalismo que tiveram papel fundamental na criação ou na operação dos jornais. As perguntas foram estruturadas em dois eixos vinculados à necessidade de combater os desertos de notícias. Primeiro, sobre o papel que os jornalistas desempenham (ou deveriam desempenhar) nas sociedades. A ideia era perceber como os estudantes entendiam a sua atividade a partir do trabalho realizado junto às comunidades. E o quanto esse entendimento se aproximava (ou não) de uma visão idealizada da prática profissional – especialmente em relação à função de vigilância (watchdog) dos poderes. Segundo, sobre como a formação oferecida pelos cursos de jornalismo abordam o problema dos desertos de notícias. Sobre este segundo ponto, os autores descobriram que muitos estudantes não estavam familiarizados com a expressão e o que ela significa para o jornalismo. Ao descobrir, perceberam o quanto a tarefa de servir comunidades subrrepresentadas pode ir ao encontro da ideia de fazer justiça social com jornalismo – uma das principais funções, para os estudantes entrevistados, que um jornalista deve cumprir. "Por sua vez, isso sugere que publicações de notícias que enfrentam desertos de notícias se alinham [...] com o papel altruísta tão valorizado pelos estudantes", escreveram. Na prática, esse altruísmo apareceu quando os veículos deixaram que suas coberturas fossem moldadas pelos interesses das comunidades – e quanto isso é importante para atualizar a ideia do que um jornalista é e o que ele faz. "O estudo mostra como as percepções dos estudantes é diferente da ideia que os profissionais têm da profissão, notavelmente com grande ênfase no jornalismo altruísta. Interagir e servir comunidades ajudou estudantes a ganhar perspectivas em relação à sua atuação no jornalismo local", escreveram os autores na discussão de resultados, sublinhando o papel que jornalistas em formação podem ter não só no combate aos desertos de notícias, mas numa oxigenação da ideia do papel que os jornalistas cumprem na sociedade. (MO)
🍂 Notícias da indústria e links diversos. Canal Meio recebe investimentos e planeja streaming (Meio e Mensagem) |. Topografia de um ecossistema de notícias: um estudo inédito diagnostica a crise da imprensa local em um único estado dos EUA (Poynter). | Os três pilares da estratégia da BBC para enfrentar os novos desafios do jornalismo (Laboratorio de Periodismo). | Martin Baron: "A polarização é um modelo de negócios" (Miguel Pellicer). | Richard Stenger: "A democracia morre atrás das paywalls" (Miguel Pellicer). | Como as organizações de notícias podem contar histórias não contadas com rastreamento de fontes (American Press Institute). | Por que o ensino do jornalismo precisa das humanidades (J-Source). | 35 ferramentas de visualização de dados utilizadas pelo Washington Post (Storybench). | Abraji lança curso de verificação e checagem de fatos nas eleições municipais com ênfase em inteligência artificial (Abraji). (GC)
🥕 Dados ambientais em foco. O jornalismo independente tem se ancorado em dados, e sobretudo, os socioambientais, para criar projetos inovadores, tanto no aspecto da visualização das histórias quanto na busca de novos modelos de geração de receita. Ícone dessa tendência, a Ambiental Media, iniciativa liderada pelo Thiago Medaglia, lançou essa semana a sua Loja de Dados. Desenvolvida com o apoio da Google News Initiative, a green data store visa facilitar o trabalho de cientistas, jornalistas, gestores ESG, políticos e profissionais que garimpam informações sobre temas como desmatamento, geração de energia, emissão de carbono, soja, entre outros. Em coautoria com o Instituto Serrapilheira, a Ambiental Media já tinha inovado antes, com o premiado Aquazonia, plataforma que apresenta diagnóstico sobre os ecossistemas aquáticos amazônicos no Brasil. A dificuldade de acesso e localização de dados públicos deste segmento já havia sido sinalizada em 2021, pelo relatório Área Socioambiental: Império Opacidade, da Fiquem Sabendo. Sobre a motivação do empreendimento, Medaglia conta que esse diagnóstico é compartilhado entre muitas pessoas – os dados são públicos mas não estão acessíveis. “A gente precisa que esses dados cheguem ao maior número de gente para que o debate público seja enriquecido e a tomada de decisão seja qualificada. A loja vem para cumprir esse papel, e a gente espera que o serviço seja utilizado por um público diverso”, afirma. A plataforma permite acesso a bases verificadas de forma gratuita, e conta com a possibilidade de encomendar análises customizadas. Segundo o seu criador, a ideia é que a loja se mantenha gratuita. “Mesmo que a gente venha a cobrar de usuários corporativos ou institucionais, por exemplo, no futuro, queremos sempre assegurar que quem não pode pagar também terá acesso”. Para acessar, basta criar um cadastro, logar, concordar com os termos de uso e usufruir. Bom proveito e vida longa AO LOXINHA (como falam no interior do RS).
🥕 Jornada Galápagos e o jornalismo do futuro. Um BBB do jornalismo. Foi nesse tom narrativo (e com clima de suspense) que a Galápagos divulgou, semana passada, a lista de pré-selecionados por região, para o curso intensivo que acontece em julho, em São Paulo. Dentre 1659 inscritos, 200 foram selecionados e passam agora por uma fase de entrevistas para a escolha de 30 representantes das 5 regiões brasileiras. O mote é discutir o jornalismo do futuro, com masterclasses, painéis, entrevistas e um laboratório de criação. A iniciativa intersecciona pautas relevantes para o mercado corporativo, redações e iniciativas independentes, capacitando jornalistas para atuar em temas como Amazônia, justiça climática, impacto social, gênero, questão indígena, entre outros temas.
🥕 Terra mais digital. O Google Maps está ganhando novidades úteis para os cidadãos/jornalistas interessados em fazer do planeta um local menos poluído. Em algumas cidades do mundo (ainda não no Brasil), o aplicativo passa a mostrar sugestões de rotas a pé ou usando transporte público ao lado de itinerários baseados em automóveis, comprando equivalências. A ideia é estimular a adoção de rotas com menor emissão de carbono. Também irá fornecer dados sobre locais de abastecimento de veículos elétricos. Outra ação bacana da marca foi no Dia Terra, 22 de abril, quando o doodle Google usou o recorte de imagens de satélite de locais ameaçados. Vale a pena conferir o vídeo e apreciar o processo criativo sobre as várias formas de contar uma história (que, aliás, tem sinergia com as capas do nosso Farol de Outono). (LE)
É isso, gente!
Bom final de semana e até sexta que vem.
Moreno Osório, Lívia Vieira, Giuliander Carpes e Lara Ely.
Nosso agradecimento de <3 vai para:
Adriana Martorano Vieira, Alexandre Galante, André Caramante, Andrei Rossetto, Ariane Camilo Pinheiro Alves, Ben Hur Demeneck, Bernardete Melo de Cruz, Bibiana Osório, Bruno Souza de Araujo, Caio Maia, Cristiane Lindemann, Edimilson do Amaral Donini, FêCris Vasconcellos, Filipe Techera, Gabriela Favre, Guilherme Nagamine, João Vicente Ribas, Jonas Gonçalves da Silva, Luiza Bandeira, Marcela Duarte, Marco Túlio Pires, Mateus Marcel Netzel, Monica de Sousa França, Nadia Leal, Pedro Luiz da Silveira Osório, Priscila dos Santos Pacheco, Rafael Paes Henriques, Regina Bochicchio, Roberto Nogueira Gerosa, Roberto Villar Belmonte, Rodrigo Ghedin, Rodrigo Muzell, Rogerio Christofoletti, Rose Angélica do Nascimento, Sérgio Lüdtke, Silvio Sodré, Simone Cunha, Suzana Oliveira Barbosa, Sylvio Romero Corrêa da Costa, Taís Seibt, Vinicius Luiz Tondolo, Washington José de Souza Filho.
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