NFJ#466 🍂 A cobertura da emergência climática e a isenção jornalística
O tamanho da IA como inovação disruptiva | Como as recomendações do YouTube afastam os leitores das notícias | A “cultura de redação” está se perdendo. Devemos nos preocupar?
Olás!
Moreno aqui, direto do Festival 3i, no Rio de Janeiro, onde acabei de participar de mediar uma mesa sobre desinformação no contexto das enchentes do Rio Grande do Sul. Preciso dizer que eu estava planejando contar um pouco do que vi até agora por aqui, mas confesso não vai dar. O ritmo da semana foi tão intenso que e achei melhor fazer uma pausa e viver um pouco melhor o evento do que ficar a tarde de sexta – minha mesa foi ao meio-dia – forçando uma cobertura quando na verdade deveria estar aproveitando o festival e trocando ideias com os colegas.
Se vocês tiverem urgência, as mesas estão sendo transmitidas ao vivo no YouTube do Festival. A gravação da mesa que eu dividi com Tai Nalon, Natália Leal e Christian Gonzatti, inclusive, já está disponível. No site da Ajor tem algumas matérias sobre o que rolou ontem. Mas se vocês esperarem mais uma semaninha, na edição 367 eu prometo trazer algo do que rolou nesses três dias de evento. Combinado?
Agora vamos à news, hoje tocada pela Lívia (LV) e pelo Giuliander (GC)
Antes de começar, confiram, no blog dos nossos parceiros, como reduzir a taxa de rejeição do seu site.
Bora.
🍂 O tamanho da IA como inovação disruptiva. Já abordamos o assunto na NFJ#458: há grandes chances de a inteligência artificial ser uma grande bolha. O que não significa que todas as ferramentas e empresas que estão aí buscando espaço nesse hype todo que vivemos vão acabar assim que ela estourar. Basta lembrar que o Google é uma espécie de sobrevivente da bolha da internet. Enquanto a bolha da IA não estoura, a gente especula que tamanho ela terá como inovação disruptiva. Nesta semana, Ramón Salaverría declarou que "a IA será uma revolução ainda mais profunda do que a ocasionada pela internet para o jornalismo". O professor e pesquisador da Universidade de Navarra comparou a situação atual à que a imprensa viveu com a adoção do telégrafo e do telefone. E foi além:
"A inteligência artificial é um conjunto de tecnologias que afetam as três atividades principais do trabalho jornalístico: o acesso à informação e a apuração, a produção de conteúdo e a distribuição. De repente, nos demos conta de que há ferramentas capazes de gerar automaticamente texto, imagens, sons e conteúdos audiovisuais, com suas luzes e suas sombras. Também nos facilita segmentar muito melhor a audiência. Por isso, prevejo que nos próximos 10 anos se vai produzir uma transformação mais profunda que nos 30 anteriores."
O professor do Insper Pedro Burgos meio que concorda. Num texto no LinkedIn, ele usa uma frase de Roy Amara para defender que a transformação será provavelmente menor do que o hype vende hoje em dia, mas ainda assim bastante significativa. Embora também seja jornalista de formação, Burgos prefere olhar para a educação para mostrar cautela quanto ao ritmo de adoção da inovação (que para ele está ligada aos incentivos e à empolgação das pessoas):
"A IA pode ser usada para ajudar a preparar planos de aula ou ajudar a elaborar e corrigir provas. É um uso legal, de aumento de produtividade, que já é realidade em muitas escolas e universidades. Mas podemos ir muito além, para finalmente mudar um sistema que é muito parecido há séculos, de professor falando pra uma massa de alunos passivos (seja no Zoom ou na sala), dando provas iguais para alunos muito diferentes, em diferentes estágios de aprendizado."
Em uma entrevista para o ex-reitor do Insper Marcos Lisboa em que fala mais sobre jornalismo, Burgos afirma que a grande habilidade do uso de IA é saber fazer perguntas (alguma coincidência com o trabalho de reportagem?) e defende a colocação da inteligência artificial no loop do trabalho jornalístico: "É um método sanduíche de construção de conhecimento. Você tem a ideia, a inteligência junta as coisas e você edita de novo.
Outros conteúdos sobre jornalismo e IA que nos chamaram a atenção na semana:
(Quase) Tudo que já aprendemos sobre IA e jornalismo (Polis LSE);
A alucinação é inevitável: uma limitação inata de grandes modelos de linguagem (pré-print de estudo);
"Você vai ficar para trás": Charlie Beckett apela para que as redações acompanhem os rápidos desenvolvimentos da IA (Carleton University School of Journalism and Communication);
O Business Insider assinou um grande acordo com OpenAI. Mas o ChatGPT ainda não dá crédito aos maiores furos do site (Nieman Lab);
A Meta desafia a indústria de notícias a processá-la. E a mídia tem bons motivos para fazê-lo (The Audience is Always Right);
Mantendo a conversa limpa: como a IA ajuda o Financial Times a moderar comentários (Journalism.co.uk);
Os desafios da IA do jornalismo investigativo: precisão e preconceito, explicabilidade e recursos (Online Journalism Blog);
Um decálogo para o uso ético da IA na mídia (Associação Basca de Jornalistas);
Pesquisadores comparam políticas e diretrizes de IA em 52 organizações de notícias do mundo todo (The Journalist's Resource);
O próximo momento da pirâmide invertida da IA para o jornalismo (Poynter);
O que funciona: estratégias para reportar a IA (EBU);
Newsletters podem ser o próximo desafio para os editores à medida que a IA chega à Apple (The Media Leader). (GC)
🍂 A cobertura da emergência climática e a isenção jornalística. Conforme a água baixa nos rios, lagos e lagoas do Rio Grande do Sul, a intensa cobertura factual sobre as enchentes de maio tem dado lugar a cada vez mais reflexões e sugestões de ações para que o jornalismo possa colaborar para manter vivo o sentido de urgência imposto pela emergência climática. Num texto do GGN, Alceu Castilho defende que os veículos de comunicação precisam descartar de vez o "dogma da isenção" (que, para o autor, se traduz pela preocupação da imprensa em ouvir os dois ou mais lados de uma história) na cobertura das grandes catástrofes que se sucedem todas as semanas mundo afora. Escreve ele:
"Pensar em neutralidade num contexto ambiental como o que estamos vivendo equivale a praticar o absurdo de dar voz aos que defendem uma espécie de suicídio universal. Seria mais ou menos como só abandonar um navio afundando depois de consultar quem não quer se salvar. É impensável, mas é o que muitos jornalistas e órgãos da imprensa estão fazendo movidos pela inércia gerada por rotinas e regras que estão caindo em desuso. Atender às necessidades informativas da sociedade implica hoje exatamente o oposto do dogma da isenção. Ou seja, dar às pessoas dados, fatos e ideias que contribuam para a sua sobrevivência. Isto significa uma opção clara em matéria de política editorial, seguindo o precedente já assumido pela imprensa em casos como a defesa da democracia ou do combate às notícias falsas."
Castilho cita diversos acontecimentos e estudos que confirmam a urgência climática amplamente divulgados pela mídia para argumentar que não falta informação sobre a situação de ameaça à nossa sobrevivência. Falta uma atitude mais firme, que talvez só seja possível através de um consórcio de veículos de comunicação que se comprometa com um ideal maior, como sugerido pelo ombudsman da Folha de S. Paulo, José Henrique Mariante, em sua coluna de despedida da função. "Em vez da posição de observadores imparciais da tragédia ambiental estamos colocados diante da necessidade de assumir a defesa do princípio da sobrevivência", escreve.
Ele dá o exemplo de uma cobertura em que o jornalismo já está falhando em desempenhar este papel em escala global: as eleições (24 países passam por pleitos em 2024). O autor menciona um texto do Guardian para afirmar que "depois de um 2023 que bateu recordes históricos de calor, a questão ambiental não aparece no ranking dos cinco temas mais abordados pela imprensa na maior parte dos países. Nos Estados Unidos, por exemplo, o ambiente não está nem entre os dez assuntos mais tratados em jornais, rádios e telejornais, apesar de 56% da população achar que as tragédias naturais são cada vez mais frequentes e perigosas". Frustrante, para dizer o mínimo.
Desde o início das enchentes, a NFJ tem buscado valorizar a cobertura de veículos de comunicação (na sua maioria, independentes) que têm apontado o dedo para falhas que poderiam ter evitado uma tragédia tão grande como a que aconteceu no Rio Grande do Sul, assim como ações deliberadas de autoridades (como, por exemplo, afrouxamento de legislação ambiental) para atender diversos interesses econômicos em detrimento da defesa da população diante de eventos climáticos extremos.
O veterano repórter Carlos Wagner espera que os discursos dos candidatos sejam menos contrários à preservação do meio ambiente nas eleições de outubro no Brasil. Segundo ele, as enchentes de maio foram fartamente documentadas e os eleitores entenderam que a intensidade incomum das chuvas está associada à urgência climática. "Dentro dessa realidade, fica difícil para um candidato negar os acontecimentos. Pode dar a sua interpretação dos fatos. Mas não pode dizer que nada aconteceu. O que é um passo importante", escreve. O autor lembra que, por muitos anos, prosperou nas próprias redações, "em especial entre os jornalistas das editorias de economia e política, a ideia de que o rigor das leis ambientais, somado à burocracia do estado, eram responsáveis pelo trancamento de projetos econômicos importantes que gerariam muitos empregos e trariam riquezas e prosperidade". Olha a importância do jornalismo aí. (GC)
🍂 Como as recomendações do YouTube afastam os leitores das notícias. Vocês sabem que o jornalismo vive um relacionamento complicado — pra não dizer abusivo — com as plataformas de redes sociais. Seja de maneira explícita, no caso das mudanças algorítmicas da Meta, ou distribuindo hostilidades, como Elon Musk e seu X, fato é que o YouTube parecia ser uma das plataformas mais amigáveis para as notícias. De acordo com o Digital News Report 2023, 20% dos adultos utilizam a rede social de vídeos para obter notícias, na média global da amostra. Mas, sem fazer alarde, o YouTube acaba por empurrar as pessoas das notícias para o entretenimento. Esta foi a conclusão deste estudo de Shengchun Huang e Tian Yang, publicado na revista Political Communication, e destrinchado na newsletter RQ1, dos professores Mark Coddington e Seth Lewis.
A metodologia é bem interessante e o corpus de pesquisa, robusto. Huang e Yang coletaram 1,7 milhão de vídeos, usando navegação anônima automatizada para eliminar qualquer histórico de exibição individual. Eles usaram análise de rede, modelagem matemática e cadeias de Markov para determinar a probabilidade de vídeos de notícias serem recomendados em comparação com outras categorias temáticas. Os autores descobriram que existem basicamente duas maneiras possíveis pelas quais o algoritmo do YouTube potencialmente redireciona os usuários para longe das notícias:
Uma “bolha de filtro por tópico”, na qual você assiste a vídeos de entretenimento e continua recebendo recomendações de mais vídeos de entretenimento; e
O “redirecionamento algorítmico”, em que o algoritmo faz o oposto e recomenda algo diferente do que você está assistindo — por exemplo, um vídeo de entretenimento depois que você termina de assistir a um vídeo de notícias.
O estudo conclui que o efeito de bolha de filtro por tópico era mais forte para a maior parte dos vídeos de entretenimento do que para notícias, e que o redirecionamento algorítmico também funcionava muito mais a favor dos vídeos de entretenimento. “Em outras palavras, se você assistir a um vídeo de entretenimento, é muito mais provável que lhe seja recomendado o mesmo gênero de vídeo do que se você assistir a um vídeo de notícias”, resumem Coddington e Lewis na newsletter.
Em média, dizem os autores do estudo, um vídeo de entretenimento tinha três vezes mais probabilidade de ser recomendado do que um vídeo de notícias, indicando que, independentemente de qual vídeo comecem a assistir no YouTube, é mais provável que acabem por ver vídeos de entretenimento do que de notícias. Embora não tenha abordado essa questão diretamente, os autores inferem que os vídeos de entretenimento estão enraizados numa lógica econômica do YouTube construída em torno do aumento do engajamento. Bingo. (LV)
🍂 Notícias da indústria e links diversos. Lições de newsletters premiadas. Spoiler: teste cada newsletter que enviar, não tenha medo de mudar as coisas e fomente o diálogo com os leitores. [Adam Tinworth] | A “cultura de redação” está se perdendo. Devemos nos preocupar? [IJNet] | Fechamento de 400 meios de comunicação em 20 anos agrava a crise de desemprego no jornalismo venezuelano. [LJR] | Os produtos jornalísticos podem ficar muito melhores, mas serão necessárias mudanças – inclusive nas redações, diz Michaël Jarjour, gerente de Produto no Financial Times. [News Product] | Guilherme Fuoco investe em notícias do Limão e quer revolucionar o bairro paulistano com jornalismo comunitário. [Folha] | Congresso da Abraji terá atividades dedicadas às eleições. [Abraji] | A 16ª edição do Prêmio Jovem Jornalista Fernando Pacheco Jordão convida estudantes de jornalismo de todo o país a produzirem propostas de pauta a partir dos dados do mais recente Censo do IBGE. [Prêmio Jovem Jornalista] | O Edital de Jornalismo de Educação do Jeduca dá destaque para pautas sobre a tragédia climática no Rio Grande do Sul. [Jeduca] Em breve, você poderá usar seu iPhone para gravar entrevistas pelo telefone. E depois que desligar, seu telefone transcreverá essas gravações para você. [Nieman Lab] | Após anunciar problemas financeiros e vazar disputas de bastidores, o WPost tenta seguir em frente. (LV)
É isso.
Sextou no Rio de Janeiro. Bom final de semana e até sexta que vem.
Moreno Osório, Lívia Vieira e Giuliander Carpes
Nosso agradecimento de <3 vai para:
Adriana Martorano Vieira, Alexandre Galante, André Caramante, Andrei Rossetto, Ariane Camilo Pinheiro Alves, Ben Hur Demeneck, Bernardete Melo de Cruz, Bibiana Osório, Bruno Souza de Araujo, Caio Maia, Cristiane Lindemann, Edimilson do Amaral Donini, FêCris Vasconcellos, Filipe Techera, Gabriela Favre, Guilherme Nagamine, João Vicente Ribas, Jonas Gonçalves da Silva, Luiza Bandeira, Marcela Duarte, Marco Túlio Pires, Mateus Marcel Netzel, Monica de Sousa França, Nadia Leal, Pedro Luiz da Silveira Osório, Priscila dos Santos Pacheco, Rafael Paes Henriques, Regina Bochicchio, Roberto Nogueira Gerosa, Roberto Villar Belmonte, Rodrigo Ghedin, Rodrigo Muzell, Rogerio Christofoletti, Rose Angélica do Nascimento, Sérgio Lüdtke, Silvio Sodré, Simone Cunha, Suzana Oliveira Barbosa, Sylvio Romero Corrêa da Costa, Taís Seibt, Vinicius Luiz Tondolo, Washington José de Souza Filho.
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