A comunicação feita por indígenas é o arco e flecha do século 21
Em 2024, o fortalecimento da comunicação indígena será fundamental para preservar a cultura dos povos originários; para isso, o jornalismo precisará reconhecer profissionalismo dos seus integrantes
A história do Brasil desde a colonização foi escrita por quem? Durante muito tempo, as narrativas sobre como eram as comunidades, aldeias, culturas, rituais, cantos e línguas foram escritas pelo olhar do estrangeiro, foram criados estereótipos e uma visão deturpada do que são os povos indígenas. Falavam em seus poemas, jornais e livros sobre o corpo indígena sem verdade, sem alma e sem história. Tudo que se sabe sobre os povos originários a partir dos não indígenas são construções de uma visão que eles mesmos criaram, visões que causaram controvérsias sobre a realidade de fato.
Imagine só, você pega um livro na escola, abre na história do Brasil, e lá está escrito a palavra “selvagem” destinada aos povos indígenas. Isso é apenas um dos exemplos de como a escrita e o olhar do outro sobre nós perdura até hoje. Mas a pergunta que fica é: há possibilidade de reescrever a narrativa sobre os povos indígenas no Brasil?
Nos meios de comunicação convencionais observo algumas minúsculas mudanças: os termos começam a se modificar, o modo de falar e abordar assuntos indígenas já não é mais o mesmo. No entanto, ainda há um longo caminho até chegar em um ponto em que indígenas possam começar a se enxergar nesses espaços, em que os desenhos para as crianças possam ter indígenas, e não apenas nas aldeias e na floresta, mas também nas escolas, fazendo música, morando em cidades e usando celular. Quando houver mais apresentadores de programas, e atrizes e atores indígenas forem cada vez mais protagonistas de novelas. É esse o momento em que a presença dos nossos povos começará a ser normalizada em todos os lugares, e isso inclui a comunicação.
2024 pode ser o ano para avançarmos nessa caminhada.
A comunicação ancestral
O comunicar indígena é trazido pela memória. Muitas coisas foram arrancadas à força dos povos indígenas: seus territórios, seu modo de viver e até mesmo a língua materna. Mas há algo que nunca puderam matar e nem usurpar: a nossa história. A história contada nas inúmeras reuniões, assembleias e no entardecer em frente às suas casas. A narrativa contada pelos mais velhos e repassada de geração em geração até aqui. Essa é a base da nossa comunicação indígena.
O Xamã Davi Kopenawa diz: “Meus pensamentos não poderão ser destruídos pela água ou pelo fogo”. Da mesma forma, digo que a comunicação hoje é fundamental para resguardar memórias que não são pensamentos quaisquer, mas sim a história dos nossos povos. Se pararmos de ouvir os ancestrais, logo corremos o risco da nossa geração não ter mais a narrativa contada por aqueles que as trouxeram até aqui.
Não há comunicação sem território!
Mas o que seria essa comunicação? São inúmeras as possibilidades de respostas. Assim como há uma diversidade de mais de 300 línguas indígenas divididas nos mais de 1,7 milhão de indígenas registrados nos dados do IBGE de 2022, a comunicação indígena é diversa e plural.
A coletividade é um dos pontos principais da comunicação indígena. Não há como falar do “eu’ sem falar sobre o “nós", e isso está presente desde os primórdios das vivências dos povos indígenas. A caçada e a pesca são feitas quase sempre em grupo, as plantações dos roçados sempre têm a ajuda dos outros parentes, a farinha da mandioca nunca é feita por uma única pessoa. Com a comunicação não poderia ser diferente. Mas há algo essencial: as raízes da comunicação indígena estão fixadas na terra. Sem território não há comunicação, não há vida.
O futuro ancestral é feito por comunicadores e jornalistas indígenas
Quantas vezes você já ouviu falar que o futuro é indígena? Mas a pergunta é: quem escreverá esse presságio? Nem todo comunicador é jornalista, mas todo jornalista é comunicador. A presença de comunicadores indígenas tem sido cada vez mais notada em diversos ambientes, seja na ocupação das organizações indígenas, na televisão, nas rádios, na internet e nas intensas mobilizações.
A comunicação sempre esteve presente nas estratégias de defesa dos direitos indígenas. Hoje atrelada à tecnologia ela é o novo arco e flecha dos povos indígenas. Já temos o domínio da caneta e do papel, compreendemos as leis que tratam sobre nós e agora temos uma nova forma para lutar, os comunicadores indígenas. Em 2024, essa luta será ainda mais fortalecida.
Não podemos mudar a história de 1500, mas podemos reescrever nossas narrativas. O olhar estrangeiro não será mais necessário. Na verdade nunca foi, tudo que foi escrito sobre nós foi imposto. Mas hoje a mesa virou, e quem escreve são os próprios indígenas. Esse é um movimento que começa a crescer no período pandêmico, mas há iniciativas anteriores, como o caso da rede Wayuri, que reúne mais de 30 comunicadores representantes de 23 povos do Rio Negro, a rádio Yandê, entre outras que foram fundamentais. Mas é na turbulência da covid-19 que a necessidade torna a atuação de comunicadores indígenas essencial para informar sobre a doença, sobre a importância da vacina e também para combater as fake news que chegaram até as nossas comunidades e aldeias.
Neste tempo surge a rede de comunicadores da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), que hoje conta com mais de 80 comunicadores atuando nos nove estados da Amazônia Brasileira. Em Roraima surge a rede Wakywai. Nas regionais da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) há centenas de comunicadores que hoje fazem registros fotográficos, vídeos e escrevem. Tudo isso faz parte desse novo processo de reconstrução da história indígena. Apesar das imensas lacunas que ainda precisam ser preenchidas, já há avanços.
Quanto aos jornalistas indígenas, os desafios são imensos. Há redações que não querem mudanças e insistem na continuidade da violência contra os povos indígenas. O retrato do jornalismo brasileiro ainda é elitista. Quantos jornalistas indígenas você conhece? Quantos fazem parte do seu círculo de amigos? Você indicaria um jornalista indígena para algum trabalho de relevância? Com certeza as respostas seriam: conheço uma pessoa, conheço duas, ou não conheço nenhuma.
A presença indígena em seus diversos lugares deve ser vista muito mais do que apenas o “diverso", a “cota”. É preciso entender que para mudar é primordial ouvir, e ouvir nem sempre será fácil. O tempo indígena é outro. Quantos, na correria de redações, conseguiriam parar e entender esse tempo? Mas isso é necessário se quisermos avançar com a democratização da informação.
Em muitos espaços, comunicadores indígenas ainda são vistos como mão de obra barata. Mesmo sendo qualificados e com trabalhos brilhantes, ainda são procurados para indicação e apuração de matérias sem nenhuma remuneração. É preciso compreender que esses comunicadores são profissionais, e é essencial que eles sejam reconhecidos por isso. Há comunicadores com habilitação em escrita, cinema, fotografia, design e podcast. Não dá mais para dizer que não há profissionais indígenas.
A comunicação indígena é contra hegemônica, nosso compromisso é com nossos povos. A grande questão é como manter a subsistência das redes de comunicadores indígenas e dos jornalistas independentes? É preciso falar de políticas públicas, de uma comunicação cidadã como um direito para todos, e os comunicadores indígenas podem ajudar nessa construção.
Acredito que a mudança irá ocorrer quando as iniciativas feitas por indígenas forem reconhecidas como instrumentos de mudança, e para isso é preciso um orçamento no Ministério das Comunicações que possa fazer com que esses comunicadores sejam remunerados por levar a informação aos seus povos.
A realidade indígena é diversa e complexa. Quando falamos de Amazônia, por exemplo, estamos falando de mais de 180 povos indígenas. Há problemas com internet, no saneamento básico, de transporte, a logística é extremamente cara, e é nessa realidade que muitos comunicadores e jornalistas estão inseridos.
Quanto vale a vida de um comunicador indígena?
Nesse questionamento quero chamar atenção para que o poder público enxergue esses profissionais que estão denunciando, mostrando com clareza o que ocorre nos seus territórios, e é nesse contexto que retorno para o início desse texto: a base da comunicação indígena é a memória, e a memória envolve a luta pelo território, pois sem a mãe terra, os povos indígenas desaparecerão.
É preciso avançar, mas avançar para onde? A democracia que tanto defendemos só faz sentido se os povos indígenas estiverem com seus direitos garantidos e resguardados. Em 2024, a comunicação terá um papel fundamental nessa luta.
Este texto faz parte da série O Jornalismo no Brasil em 20243. A opinião dos autores não necessariamente representa a opinião da Abraji ou do Farol Jornalismo.