Audiência precisa ser parte da solução de qualquer problema do jornalismo
Em 2024, jornalismo vai seguir sendo feito por pessoas e para pessoas; uma interação sem barreiras é capaz de aumentar confiança e engajamento, reduzir rejeição às notícias e gerar receita
Se o jornalismo é um produto/serviço, e se produtos/serviços são feitos para alguém, é certo dizer que tudo o que fazemos tem uma finalidade: atender às necessidades e resolver as dores da nossa audiência, seja ela formada por dezenas ou por milhões de pessoas.
Não importa o tamanho. O jornalista serve a uma comunidade e precisa saber se relacionar com essa comunidade. Por isso, em certa medida, o relacionamento com a audiência é parte da solução para qualquer problema do ecossistema de notícias. Em 2024, precisaremos aprender essa lição.
Peguemos como exemplo a desinformação, que tem impacto nos sistemas eleitorais e na democracia em geral. Por mais que tenhamos ideias de soluções inovadoras, só dá para combater esse problema se a audiência confiar mais no jornalista/fact-checker do que naquilo que taxamos como falso e/ou duvidoso.
Da mesma forma, uma parte da solução para a desinformação também tem que ser a estratégia de distribuição de conteúdo (verdadeiro e/ou checado), porque não adianta desenvolver um produto/serviço inovador se ninguém souber que ele existe.
Finalmente, sabendo da existência do produto e confiando nele, o público precisa querer usá-lo. Ou seja, a audiência precisa querer se informar; querer saber mais. Então, o jornalismo também tem que ser capaz de impactar e engajar.
Essa breve exposição que relaciona desinformação, falta de confiança e news avoidance, que são 3 dos maiores problemas que enfrentamos, mostra que todos eles têm algo em comum: a necessidade de se relacionar com a audiência para endereçar soluções eficientes.
Temos falhado nisso.
Os dados do Reuters Digital News Report, uma das principais pesquisas do nosso ecossistema, mostram que o Brasil era, em 2022, o país com maior taxa de news avoidance do mundo: 54% das pessoas diziam evitar as notícias propositalmente, e as razões eram muitas.
Falavam que o noticiário despertava nelas uma sensação negativa; que não sabiam o que fazer com as notícias (ou seja, não entendiam o que reportávamos); que havia excesso de determinados tipos de notícias; e que se sentiam sobrecarregadas com tantas informações.
Havia ainda aqueles que diziam evitar ativamente o noticiário por considerá-lo enviesado e/ou pouco confiável, proporção que ficava ainda maior quando considerávamos as audiências mais jovens, de 18 a 34 anos.
Quem está familiarizado com essa pesquisa poderá dizer com propriedade que news avoidance, no Brasil, despencou para 41% na edição deste ano (2023). A redução de 13 pontos percentuais é, de fato, uma boa nova.
No entanto, tudo indica que isso ocorreu por 2022 ter sido ano eleitoral, então as pessoas teriam passado, pontualmente, a procurar se informar mais. A aposta é que, em 2024, haja uma variação para cima nesse dado.
Além disso, a redução da rejeição às notícias não veio acompanhada de uma maior confiança no noticiário. Ou seja, a audiência evitou menos, mas desconfiou mais. No Brasil, a curva de confiança continuou uma trajetória de queda, indo de 48%, em 2022, para 43% na passagem anual.
Esse é um movimento presente na maior parte dos países pesquisados, motivo pelo qual a introdução do próprio levantamento já coloca “o baixo engajamento” e a “alta falta de confiança” como desafios globais a serem superados.
Apesar desses números, sou bastante otimista em relação ao futuro do jornalismo. Numa média global, até mesmo aqueles que dizem evitar notícias, falam que estão interessados em alguns tipos de informação. A maioria menciona acontecimentos positivos (55%), mas logo em seguida vêm dois formatos: soluções (46%) e explicações (39%).
Isso mostra várias coisas, entre elas:
Jornalismo de soluções é um formato que deve ser considerado em todas as produções jornalísticas, porque, além do problema, apontamos potenciais resoluções. É mais simpático da nossa parte (e eficiente).
Jornalismo lento (slow journalism) também é um conceito importante, porque o excesso de notícias, mesmo que confiáveis, também tem potencial de desinformar, porque causa incompreensão e afasta a audiência. Às vezes é melhor ir devagar, respirar e dar mais contexto aos fatos.
O que defendo há anos, desde que fui EML (Emerging Media Leader) do ICFJ (International Center for Journalists) em 2020, é que o jornalismo deve ser mais “cool” para ser capaz de engajar e impactar a audiência. O lema “make it cool and have fun” ganhará lugar no jornalismo em 2024. No ano que vem, precisaremos de “branding” para gerar boca a boca, o mais forte processo de construção de confiança que existe.
(Parênteses: é natural que uma narrativa falsa seja repassada por alguém sem intenção de enganar – e justamente por isso engana. Um processo de boca a boca, amigo para amigo, familiar para familiar. O jornalismo pode usar o mesmo processo para construir confiança, como fez o Correio Sabiá. Uma newsletter inicialmente enviada a um grupo de WhatsApp escalou, porque a audiência compartilhou o conteúdo com seus próximos.)
Também defendo a interação sem barreiras, capaz de colocar audiência e organização de notícias em contato direto. Se possível, com gamificação. Os maiores jornais do mundo, como New York Times e Washington Post, investem nisso.
Permitir uma interação direta da audiência com jornalistas é uma forma transparente de realizarmos nosso trabalho e empoderar o público, que ganha voz ao poder dizer e/ou perguntar o que realmente lhe interessa. Isso torna todo processo jornalístico num jornalismo de soluções, voltado para as reais necessidades da audiência.
Apenas ouvindo a nossa audiência é que poderemos fazer um conteúdo centrado nela. Em inglês, audience-centered e audience-first são algumas das expressões que mais gosto para transmitir essa ideia.
Os feedbacks que nossos leitores/ouvintes/espectadores nos dão são as melhores maneiras de desenvolver novos produtos e/ou melhorar o que já temos.
No ano que se avizinha, a inclusão deles no processo jornalístico é essencial para nós e para eles próprios, porque valida (ou não) o que estamos desenvolvendo, reduz nossas chances de erro e ainda os beneficia diretamente, porque serão os usuários finais daquilo que estamos fazendo.
A inclusão da audiência no processo jornalístico ainda aumenta o potencial de geração de receita para a organização de notícias, como mostrou um estudo publicado no Journal of Communication. O experimento durou 6 meses, nos quais 20 jornais locais engajaram leitores ao perguntar quais temas deveriam ser respondidos por seus jornalistas, em formatos de reportagens.
O próprio Correio Sabiá introduziu uma estratégia semelhante. Passou a propor que sua audiência vote em enquetes dos grupos de WhatsApp para selecionar qual conteúdo especial será publicado aos finais de semana. Em poucas horas, tivemos centenas de respostas.
O aprendizado mais interessante, no entanto, talvez tenha sido que houve fortalecimento na relação até com os três leitores que mostraram não ter gostado das opções disponíveis. Isso porque deram insights sobre outras reportagens que podemos produzir e ficaram gratos com a consulta que fizemos a eles.
Esse processo interativo sem barreiras transforma o público de consumidor em parceiro, portanto muito mais propenso a remunerar pelo conteúdo produzido ao sentir-se parte de uma comunidade. É uma maneira de mostrar a importância deles.
Resumindo, a interação sem barreiras cria confiança no nosso trabalho, aumentando as possibilidades de consumo e compartilhamento pela audiência, que fica mais propensa a comparecer aos eventos da organização de notícias e a pagar por seu trabalho.
Focado no Brasil, na Índia, nos Estados Unidos e no Reino Unido, o Trust in News Project, do Reuters Institute, também aponta na mesma direção. O estudo mostra, entre outros pontos, como o engajamento é capaz de garantir que os sentimentos do público sejam ouvidos.
É necessário dizer que, mesmo com avanço da inteligência artificial, em 2024, serão as habilidades humanas que garantirão o futuro do jornalismo.
É a capacidade de ouvir e ter empatia pela nossa audiência que vai construir confiança no nosso trabalho; que vai reduzir a rejeição ao noticiário; e que vai permitir a implementação de soluções para os problemas que vivemos, como a desinformação.
A inteligência artificial vai ter um papel mais importante nos próximos anos, mas sendo uma ferramenta usada por nós para melhorar o nosso trabalho e o serviço que oferecemos.
Os jornalistas vão continuar sendo membros de comunidades, que são um conjunto de indivíduos que compartilham algo em comum. É com indivíduos que vamos falar e construir relações.
Em 2024, o jornalismo vai continuar sendo de humanas.
Este texto faz parte da série O Jornalismo no Brasil em 2024. A opinião dos autores não necessariamente representa a opinião da Abraji ou do Farol Jornalismo.