É possível fazer uma outra cobertura de segurança pública em 2024
Ao desafiar padrão racista e chapa-branca do noticiário sobre violência, veículos independentes e comunitários desafiam mídia hegemônica a fazer uma cobertura mais crítica da atuação do Estado
Mãos algemadas para trás, encurralado no porta-malas de trás de uma viatura policial, um jovem negro se vê rodeado por repórteres, luzes, cinegrafistas, câmeras e perguntas, que o rodeiam feito um pelotão de fuzilamento. “Foi você que roubou a moça com faca?”, pergunta um repórter, brandindo um microfone como se fosse uma arma. O jovem começa a dizer que não, mas o jornalista o interrompe: “Foi com faca! Você não tem vergonha de roubar trabalhador?”. Um outro repórter acrescenta: “Para bater na moça você é bom, agora está aí que nem uma mocinha”. De volta ao estúdio, o apresentador Sikêra Jr., do programa Alerta Nacional, da Rede TV, comenta, diante da imagem congelada do rapaz: “Isso é um tanga frouxa, isso quando bater o pé corre”. Uma claque ao fundo repete o xingamento: “Tanga frouxa!!!”.
Quarenta minutos depois, o mesmo programa, exibido na tarde de 4 de junho de 2020, aborda a história do menino Miguel Otávio Santana, que morreu aos 5 anos após cair do 9º andar de um prédio de luxo, no Recife (PE), por causa da negligência da patroa da mãe da criança, Sari Corte Real, esposa do prefeito de Tamandaré, que o deixou entrar sozinho em um elevador. Naquela altura, o nome da primeira-dama e sua foto já haviam se espalhado pelo noticiário, mas Sikêra avisa que seu programa não vai mostrar a mulher nem mencionar o nome dela. “Ela não pode ser mostrada graças à lei de abuso de autoridade”, afirma o apresentador, aproveitando para atacar legisladores esquerdistas que aprovam leis para proteger bandidos.
Não ocorreu a ninguém do programa questionar se a legislação que supostamente protegeria a suspeita branca e rica também não valeria para o jovem que a equipe havia exposto e humilhado menos de uma hora antes. A noção de que alguém negro e pobre simplesmente não teria direito a integridade, respeito ou presunção de inocência, mas uma pessoa branca e rica teria todos esses e mais alguns, é referendada em rede nacional como um fato da vida, simples e inquestionável.
Isso é só um exemplo aleatório de como uma parte muita vista e lucrativa do jornalismo hegemônico cobre as ações da polícia sobre as populações pobres, pretas e periféricas. Não se trata apenas de omitir ou deixar de denunciar violações cometidas pela polícia e outros órgãos do sistema de justiça. Muitas vezes os jornalistas se tornam, eles próprios, violadores de direitos, em cumplicidade com as forças de segurança. Uma pesquisa com 28 programas policialescos de rádio e TV em dez estados, realizada por Intervozes, Artigo 19, ANDI e Ministério Público Federal, documentou mais de 4.500 violações de direitos, 8.232 infrações às leis brasileiras, 7.529 infrações a acordos internacionais e 1.962 desrespeitos a normas autorregulatórias, cometidas em matérias jornalísticas ao longo de um único mês, em 2015 — e duvido que mostraria dados muito melhores se fosse feita hoje.
É por isso que fico incomodado com os que tratam o caso da Escola Base como um dos piores crimes cometidos pela imprensa brasileira, apenas porque suas vítimas pertenciam à classe média. Quando se trata das populações pobres e racializadas, o jornalismo está sempre fazendo condenações sumárias e destruindo vidas com base em precárias versões policiais, produzindo Escolas Bases em um ritmo industrial todos os dias.
Um país que convive com um jornalismo que viola direitos humanos dessa maneira não vive o que se poderia esperar de um estado democrático de direito. O mínimo a ser feito seria impor a esses programas uma classificação indicativa que tirasse esses programas do horário nobre e os lançasse para depois das 22h, como foi feito no Uruguai. Mas isso, como disse, é o mínimo. Um país que levasse sua Constituição a sério já estaria discutindo a não renovação das concessões públicas das emissoras de TV e rádio que veiculam regularmente esse tipo de conteúdo.
As vidas que importam
Os programas policialescos, porém, são apenas a parte mais visível e pitoresca do racismo midiático, que faz parte de uma ampla tradição na cobertura de temas de criminalidade e segurança pública. Os veículos tidos como sérios não são menos racistas do que os programas sensacionalistas, só menos espalhafatosos. Os preconceitos de raça e classe social desse jornalismo vão se manifestar principalmente no ponto de vista escolhido para observar a problemática da violência urbana, a partir da perspectiva dos enclaves brancos de classe média e alta das grandes cidades, seguindo a regra não escrita de que o destaque a ser dado a uma notícia de crime está diretamente ligado à cor da pele e ao CEP dos envolvidos. Embora não costume ser registrada nos manuais de redação, essa norma é tão manjado que já virou tema até da esquete “Tabela de Conversão”, da Porta dos Fundos, sobre os critérios jornalísticos que definem a importância jornalística de uma notícia sobre morte: “Confronto com a polícia divide por 30, favela divide por 10”.
Com isso, o jornalismo reflete e reforça o racismo da atuação do poder público, num círculo vicioso em que o noticiário só se importa com vidas brancas e os governos só vão agir em prol das pessoas brancas porque é o que dá notícia. Assim, crimes contra pessoas brancas em “áreas nobres” — para repetir essa expressão tão significativamente aristocrática, usada à exaustão nesse tipo de cobertura — se tornam grandes acontecimentos, uma perturbação da própria realidade como a conhecemos, o conteúdo noticioso por excelência, o homem mordendo o cão da anedota jornalística, e merecem uma cobertura exaustiva, capaz de repercutir por semanas, meses ou mesmo anos, até obrigar os poderes da República a oferecerem uma resposta, quase sempre baseada apenas em aumento da repressão e do encarceramento, que inevitavelmente atingem os mais pobres e pretos.
Em 1994, a morte da atriz Daniela Perez levou a uma mudança na Lei de Crimes Hediondos, que retirou a progressão de pena para os autores de homicídio qualificado — uma medida que, como tudo o que envolve a legislação de crimes hediondos, se mostrou inútil para fazer diminuir a criminalidade, mas contribuiu para fazer do Brasil um país com a terceira maior população carcerária do mundo, na qual quase 7 em cada 10 prisioneiros são negros. A enorme repercussão midiática do assassinato da estudante Liana Friedenbach fez o governo de São Paulo, em 2006, criar do nada uma Unidade Experimental de Saúde, totalmente à margem da lei e das convenções internacionais, apenas para abrigar o assassino da jovem, Roberto Aparecido Alves Cardoso, o Champinha, e transformou o crime em uma referência no debate sobre a suposta necessidade de redução da maioridade penal (embora o próprio pai de Liana tenha se colocado contra essa redução e denunciaod o tratamento privilegiado que o jornalismo deu para o crime contra sua filha, reconhecendo que “morrem ‘Lianas’ todos os dias, mas não são filhas da classe média”). Em 2015, o noticiário falou tanto da morte do médico Jaime Gold, assassinado a facadas enquanto pedalava pela Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro, que levou o governo fluminense a proibir o porte de armas brancas e criar um Sistema Estadual de Prevenção ao Roubo ou Furto e ao Comércio Ilegal de Bicicletas no Estado do Rio de Janeiro. Até a intervenção federal decretada pelo presidente Michel Temer na segurança pública no Rio de Janeiro, em 2018, teve como estopim reportagens do Jornal Nacional que denunciavam arrastões contra turistas no Carnaval e o saque a um supermercado na zona sul. E, neste ano, a decisão bastante questionável do governo Lula de voltar a colocar militares em funções de segurança interna, por meio de uma GLO (Garantia da Lei e de Ordem) que botou os fardados para cuidar de portos e aeroportos, foi bastante influenciada pela morte de três médicos brancos na Barra da Tijuca.
Enquanto ameaças às vidas de pessoas brancas geram tsunamis na opinião pública capazes de provocar mudanças nas leis e no sistema prisional e socioeducativo, a mesma comoção não vale para outros seres humanos. Nos últimos sete anos, apenas no Rio de Janeiro, 279 crianças e adolescentes foram assassinadas a tiros, a metade delas em operações policiais nas favelas, segundo a plataforma Fogo Cruzado. Quantas delas receberam no noticiário algum destaque remotamente parecido com o que é dado às vítimas brancas da violência nos bairros ricos? (Se bem que essa tendência felizmente começou a mudar nos últimos anos, mas isso é um spoiler do que vou falar mais à frente.)
Além de racista, o jornalismo violador de direitos também é chapa-branca, pois privilegia os discursos das autoridades sobre as demais vozes e incorpora a visão militarizada das forças de segurança que não se vêem num estado de direito, mas em um estado de exceção permanente em que as polícias têm o dever de abater determinadas pessoas que seriam menos humanas do que as demais. Não é coisa só de programa policialesco: até mesmo o jornalismo “sério” se utiliza de expressões desumanizadoras que se prestam a justificar a repressão estatal, num conluio racista midiático-policial.
Em 10 de maio do ano passado, a Folha de S.Paulo publicou uma reportagem sobre a cracolândia do centro de São Paulo toda baseada em fontes da polícia, que justificava a prisão em massa de moradores de rua por tráfico de drogas com o argumento de que atuariam como pequenos traficantes, chamados pejorativamente de “lagarto”. Uma matéria que justificava a necessidade de mais repressão para lidar com uma população animalizada. Não deu outra. Menos de 24 horas após a publicação da reportagem, a polícia lançou uma operação que removeu todos os usuários de droga empobrecidos que se concentravam na praça Princesa Isabel e o jornal fez questão de destacar, na primeira página, duas fotos aéreas de “antes” e “depois” que mostravam como o local havia ficado mais bonito livre daquela população de répteis. Um “olhar de cima” que ignorou a violência da repressão sobre negros pobres durante a ação, documentada por outros veículos. Hoje todo mundo sabe o quanto o espalhamento daquelas pessoas pelo centro só fez piorar o problema, mas é o que acontece quando jornalistas e policiais se unem na defesa de soluções repressivas simplórias para problemas complexos.
A postura racista e classista da mídia hegemônica, aliado a um tradicional distanciamento das redações em relação às classes populares, que são as que costumam sofrer na pele preta as consequências da violência policial, acaba produzindo um noticiário que apresenta sob uma luz favorável até mesmo os piores massacres cometidos pelo Estado, especialmente nos momentos em que a violência irrompe fora das favelas e periferias, gerando clamor público por soluções urgentes e violentas.
Foi o que aconteceu em maio de 2006, quando uma onda de ataques pela facção criminosa PCC matou 59 agentes públicos, entre policiais, guardas civis e policiais penais. A comoção foi enorme, como não podia deixar de ser, com merecido destaque em toda a cobertura jornalística. O que não mereceu o mesmo destaque, porém, foi a resposta policial a esses crimes, que se deu na forma de uma “punição coletiva” contra os moradores de favelas e periferias de São Paulo. Nos dias seguintes, centenas de pessoas foram executadas apenas por terem alguma passagem policial ou por estarem andando na rua durante um “toque de recolher” imposto pelas autoridades. Antes do mês chegar ao final, a atuação de policiais em ações oficiais ou por meio de grupos de extermínio matou 505 pessoas, cerca de dez vezes mais do que o crime organizado havia executado — e mais do que o número oficial de 434 mortos e desaparecidos produzidos pela ditadura militar ao longo de 21 anos. Entre as vítimas dos Crimes de Maio, estava até uma mulher grávida de nove meses, baleada na cabeça e na barriga, em Santos (SP), um dia antes da data marcada para a cesárea.
Embora uma parte da imprensa hegemônica tenha cumprido corajosamente seu papel de denunciar as violações mascaradas pelo discurso oficial, o fato é que as informações sobre as mortes de pretos, pobres e periféricos pelo Estado ao longo daquele mês nunca contaram com o destaque merecido nos veículos mais acessados pelo público. Se hoje, quando se fala em maio de 2006, as pessoas se lembram muito mais dos ataques do PCC do que da reação policial que matou dez vezes mais, isso indica uma falha em como essa história foi trazida ao grande público.
Algo se move
Nos últimos dez anos, contudo, algumas boas novidades começaram a mudar a paisagem da cobertura de segurança pública do jornalismo brasileiro. Uma geração de meios de comunicação contra-hegemônicos, independentes, alternativos e/ou comunitários (são muitos os nomes para definir esse fenômeno em andamento), muitos deles sem fins lucrativos, começou a romper com o oligopólio da informação veiculada pelos grandes veículos comerciais, disseminando outras visões de mundo e ampliando as vozes de grupos tradicionalmente silenciados.
Era como se aquele menino encurralado pelos jornalistas do vídeo que abre este artigo tivesse conquistado, enfim, um espaço para dizer o que pensa, seja através de meios comunitários criados em favelas e periferias (como Agência Mural, Desenrola e Não me Enrola, Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial, Periferia em Movimento, Redes da Maré, Voz das Comunidades) seja através de meios voltados para uma cobertura diferenciada de temas relevantes para a luta dos direitos humanos, como as questões de raça (Alma Preta, Correio Nagô, Mundo Preto, Notícia Preta) e gênero (AzMina, Catarinas, Nós, Mulheres da Periferia) ou a própria segurança pública (caso da Ponte Jornalismo, da qual sou cofundador, e do Fogo Cruzado, misto de think tank com veículo jornalístico), seja graças aos meios que observam o Brasil a partir de outras perspectivas regionais, como Amazônia Real, Sumaúma, Marco Zero… E dá-lhe reticências, porque felizmente esses são apenas alguns poucos exemplos da enorme explosão de diversidade jornalística detonada na última década.
De repente, visões, olhares e discursos até então restritos passaram a disputar diante do grande público com as narrativas oficiais sobre segurança pública. Durante muito tempo, quando uma operação policial invadia uma favela do Rio, por exemplo, o discurso governamental, que procura mostrar esse tipo de ação como um importante passo na luta contra o crime, enumerando dados de armas e drogas apreendidas e comemorando inimigos abatidos, era rotineiramente replicado pela mídia quase sem contraponto. Hoje, a edificante versão policial dessas operações passou a ser contestada em tempo real por comunicadores das favelas, que mostram os transtornos e prejuízos provocados pela ação repressiva do Estado, desde a interrupção das aulas até torturas e assassinatos.
Essas novas redes midiáticas, que trabalham junto com os movimentos sociais, contribuíram para conquistas que até pouco tempo soariam impensáveis, como a ADPF das favelas, que levou o Supremo Tribunal Federal a impor uma série de restrições para as operações policiais no Rio.
Também ajudaram a dar uma visibilidade inédita para os rostos negros das vítimas da violência. Se em 1978 pouca gente ouviu falar de Robson Silveira da Luz, cuja morte sob tortura policial motivou a criação do Movimento Negro Unificado, hoje um número crescente de pessoas conhece os rostos e os nomes de vítimas do Estado como Amarildo, Rafael Braga, João Pedro, Marcus Vinicius, Ágatha Félix, os jovens de Paraisópolis… É verdade que os rostos de vítimas brancas continuam aparecer com mais espaço e persistência nas notícias, mas a disputa acontece com mais força do que nunca.
A emersão dessas outras narrativas gerou uma pressão sobre a mídia hegemônica, que precisou se reinventar. Um sintoma dessa pressão foi uma coluna escrita pela ombudsman da Folha de S.Paulo, Flavia Lima, que apontava a cobertura enviesada e sem empatia do jornal sobre o massacre de de nove jovens durante uma operação da PM na favela de Paraisópolis, observando que “os veículos alternativos, mais preocupados em mostrar o que se passa nas comunidades, têm mais facilidade de acesso a depoimentos e vídeos”. O fato é que, nos últimos anos, as redações dos grandes veículos passaram a correr atrás do prejuízo, buscando novos enfoques e pautas e também tentando implantar mais diversidade racial e de gênero nas suas redações — ainda que, em muitos casos, limitada ao chão de fábrica e distante das chefias.
As mudanças são visíveis. Quando começamos com a Ponte, em 2014, por exemplo, éramos o único veículo de comunicação que destacava a questão racial em matérias sobre violência, o que gerava perplexidade entre colegas: “Por que mencionar que os mortos pela polícia são negros?”. Nove anos depois, e especialmente após a repercussão da morte de George Floyd (paradoxalmente, foi preciso uma morte racista nos EUA para fazer a branquitude brasileira enxergar o racismo da sua própria realidade), tornou-se impossível imaginar alguém fazendo hoje uma pergunta como essa. A questão racial se mostrou incontornável no debate sobre segurança, como em todos os outros.
Durante anos, a Ponte foi o único veículo a cobrir regularmente casos de prisões injustas, quase sempre envolvendo pessoas negras e pobres, detidas e condenadas por processos judiciais baseados em muito preconceito e poucas evidências — basicamente, a palavra dos policiais e, quando muito, o reconhecimento induzido de testemunhas. Depois que investigações realizadas por nossa equipe ajudaram a libertar aproximadamente uma centena de inocentes presos, hoje podemos dizer com alegria que não estamos sozinhos e há cada vez mais veículos se dedicando a fazer o mesmo, com enorme impacto social.
O que vem por aí
Um caso emblemático de como as mudanças dos últimos anos resultaram numa cobertura no geral mais humana e crítica e menos racista pôde ser visto neste ano durante a Operação Escudo, deslanchada em 28 de julho pelo governador paulista, Tarcísio de Freitas, na Baixada Santista, após o assassinato do soldado da PM Patrick Reis. Como o ponto de partida havia sido o caso chocante de um ataque do crime organizado a um servidor público pai de três filhos, não era difícil imaginar que boa parte do jornalismo hegemônico repetiria o que havia feito em episódios como o de maio de 2006, focando desproporcionalmente na face do Estado ultrajado pela violência e se omitindo na cobertura da reação extremamente desproporcional e violenta que esse mesmo Estado viria a adotar.
Quando, ainda no dia 30, publicamos na Ponte relatos de que a reação policial espalhava tortura e morte na Baixada e mostramos mensagens de policiais que comemoravam a matança e prometiam chegar ao “placar” de 60 mortos para vingar Patrick, eu imaginava que, mais uma vez, nós e mais alguns parças seríamos umas poucas vozes solitárias a contarem a essas histórias. Fiquei feliz ao ver como, já no dia seguinte, as denúncias sobre as violências da Operação Escudo ganharam destaque nos principais veículos, com as vozes dos moradores, e de movimentos sociais, como as Mães de Maio, se sobrepondo às declarações do governo de que os mortos eram bandidos ou “efeitos colaterais”. Podia ser mais, mas não deixa de ser uma mudança significativa que essas denúncias tenham merecido cinco minutos do Jornal Nacional do dia seguinte. E acho possível que o alcance dessa cobertura crítica tenha contribuído para que a Operação Escudo não tenha sido ainda mais sangrenta, com os 28 mortos que produziu ao longo de 40 dias.
A melhor prova de como uma parte do jornalismo hegemônico dessa vez havia rompido com a lógica chapa-branca da cobertura de segurança pública foi um vídeo postado por um policial militar que mostrava a jornalista Danielle Zampollo, do Profissão Repórter, trabalhando em uma comunidade do Guarujá em meio à ação da polícia. A imagem viralizou em grupos e veículos da extrema-direita como uma suposta “prova” de como o jornalismo estava indo longe em seu “objetivo” de “prejudicar a imagem” dos policiais. Uma reação que foi duplamente reveladora. Primeiro, do quanto a polícia não está acostumada a ser fiscalizada e sabe que tem muito a temer de uma cobertura jornalística digna do nome. E, segundo, do quanto a presença de jornalistas trabalhando em favelas e periferias ainda é vista como algo raro e chocante.
Acho importante destacar esse exemplo positivo, do ano que está acabando, para deixar claro que outra cobertura de segurança pública é possível e já está sendo colocada em prática. Os desafios, é claro, são enormes.
É um tanto surpreendente, por exemplo, constatar que o tom razoavelmente crítico da cobertura sobre a Operação Escudo não tenha feito o governador Tarcísio de Freitas recuar momentaneamente na sua política de truculência policial. É o que os governadores costumam fazer, avançando ou recuando na violência policial ao sabor dos ventos da opinião pública. O governo anterior, de João Doria, é um exemplo: eleito na esteira do bolsonarismo, havia batido orgulhosamente todos os recordes de mortes pela polícia, mas, após a repercussão negativa da morte de nove jovens numa operação em Paraisópolis, tratou de botar um freio na violência de seus agentes, por meio da instalação de câmeras nos uniformes e outras medidas, que fizeram a letalidade policial cair para os menores números desde 2005.
Acontece que a polarização dos últimos anos gerou uma linha de políticos que não buscam mais alcançar o apoio da maioria da população, mas somente de uma fatia do eleitorado, aquela capaz de garantir sua vitória em segundos turnos cada vez mais disputados. Nesse contexto, pode ser que a gente esteja diante de uma nova realidade, em que uma linha de endurecimento permanente da violência policial não se mostre mais politicamente insustentável a longo prazo. Nesse caso, o governo simplesmente não se importaria em desagradar setores importantes da opinião pública com os “efeitos colaterais” de sua política de segurança pública, desde que os apoiadores dos banhos de sangue se mostrassem numerosos o suficiente para garantir suas vitórias eleitorais, ainda que apertadas.
O que só mostra como uma cobertura de segurança pública crítica e antirracista é mais desafiadora e necessária do que nunca. 2024 é ano de eleição, e o debate raso sobre segurança pública acaba contaminando uma parte importante do debate eleitoral. Isso acontece mesmo nas eleições para a prefeitura, já que muitas das ações dos municípios têm impacto na segurança e não faltam localidades onde as guardas municipais se expandiram tanto em atribuições e armamento que se tornaram uma espécie de miniPMs, inclusive imitando muitos dos vícios das corporações em que se espelham.
Sobre isso, acho que muitos jornalistas estão preparados para questionar o discurso simplificador e repressivo quando vem da boca de figuras da extrema-direita, porque costuma soar estereotipado e até caricato, mas é preciso afiar o mesmo olhar crítico para esse discurso quando utilizado por figuras aparentemente mais “técnicas” e “sensatas” da direita moderada ou da esquerda. Quando um estado governado pelo PT se torna campeão de morte de pessoas negras pela polícia e o secretário-executivo do Ministério da Justiça, Ricardo Cappelli, diz que “Você não enfrenta o crime organizado com rosas”, está se aproximando muito, em estratégia e até em figura de linguagem, de um Jair Bolsonaro que proclamava: “Você não vai matar, não, você deixa ele atirar em você e depois dá uma florzinha nele.”
É preciso ficar atento e forte para perceber que a defesa racista da violência de Estado assume várias formas. Os discursos simplificadores sobre a segurança pública que devem ser questionados incluem uma linha aparentemente mais técnica e sensata que fala em “mais preparo, inteligência e tecnologia”, o que os pesquisadores Jacqueline Muniz e Herbert Bachett chamam de “cloroquinas da saúde”, porque se tornou uma fórmula mágica retórica que evita a questão essencial de como garantir o controle das forças de segurança pela sociedade.
É preciso não se deixar enganar por esse discurso sedutor, assim como é necessário fugir ao estereótipo de retratar a violência brasileira como uma “guerra” entre bandidos e policiais. “Não temos uma guerra do Estado contra o crime organizado. Isso é a maior das ficções”, diz o pesquisador Gabriel Feltran. A gente já está bem grandinho para saber que o crime organizado anda de mãos dadas com a polícia, e por isso todo político que fale em combater o crime precisa ser perguntado sobre o que pretende fazer para controlar as forças de segurança do próprio Estado. Neste ano eleitoral e nos próximos.
Faz décadas que os movimentos sociais denunciam que os efeitos da violência policial e do encarceramento em massa significam um processo de genocídio da população negra, uma classificação que hoje também encontra respaldo na academia, com o trabalho da pesquisadora Ana Luiza Pinheiro Flauzina, autora de Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do Estado brasileiro. Ainda que essa classificação seja controversa, o que interessa é que a situação de massacre permanente da população negra pelas forças de segurança no Brasil tem tantos paralelos com situações de genocídio que vale a pena ouvir o que os estudiosos do tema têm a dizer. E um ponto que costumam destacar é que, para um genocídio se efetivar, tão importante quanto as armas dos assassinos são as palavras dos comunicadores. Entre os “dez estágios do genocídio” descritos pelo professor Gregory H. Stanton em seu Genocide Watch, metade deles diz respeito a processos (classificação, simbolização, desumanização, negação) que são essencialmente ações de comunicação, destinadas a criar um clima de opinião propício para a atuação dos assassinos, ao convencer a opinião pública de que extermínios de determinadas pessoas são necessários, inevitáveis e até desejáveis.
Não é algo muito diferente disso que o jornalismo hegemônico brasileiro construiu ao longo de muito tempo, o que explica como o País consegue conviver com o extermínio de mais de 6 mil pessoas pela polícia, todos os anos, como se não fosse nada de mais. O fato é que, todos os dias, os jornalistas são chamados a fazerem escolhas — na seleção de uma foto ou de uma palavra, ou ao determinar o destaque dado a uma declaração governamental em relação às fontes não oficiais — que vão colocá-los como cúmplices ou opositores do genocídio em marcha no Brasil. De qual lado você quer estar?
Este texto faz parte da série O Jornalismo no Brasil em 2024. A opinião dos autores não necessariamente representa a opinião da Abraji ou do Farol Jornalismo.