Em 2024, emergência climática precisará ser a pauta de todas as editorias
Quanto mais cedo o jornalismo incorporar que o mundo já é outro nas suas reportagens, melhor vamos poder cobrar governantes e empresas e ajudar a sociedade a entender as mudanças no clima
O ano de 2023, que provavelmente se encerrará como o mais quente desde o período pré-industrial, talvez seja identificado no futuro também como o momento em que começou a virar a chavinha na mentalidade das redações de que não apenas o planeta já se encontra em estado de emergência climática, como o tema precisa ser tratado no jornalismo com a mesma abrangência que ele tem.
2023 começou com um intenso temporal no litoral norte de São Paulo. Chuvas de até 600 mm (as mais volumosas do registro histórico) provocaram deslizamentos de terra que resultaram em 64 mortos em São Sebastião no Carnaval. Poucos meses depois, dois eventos extremos que começaram como ciclones extratropicais no Rio Grande do Sul, em junho e em setembro, provocaram mais 66 vítimas.
Aí vieram as ondas de calor. Diversas cidades dos país registraram picos de mais de 40°C, ao mesmo tempo em que a Amazônia começava a sofrer com uma estiagem que se tornaria uma das piores da história. Peixes e botos mortos foram o prenúncio do que viria, com comunidades isoladas, sem água para beber na maior bacia hidrográfica do mundo.
Na sequência começaram as queimadas, e outubro quebrou recorde para o mês em número de focos na Amazônia. As fumaças tomaram Manaus, deixando a capital com alguns dos piores índices de qualidade do ar do mundo. Aí veio mais uma chuva forte, dessa vez em São Paulo, com ventos de 100 km/h que deixaram diversas partes da maior cidade do país sem luz por vários dias.
Poucos dias depois, já em novembro, exatamente quando eu concluía esse texto, teve início uma nova onda de calor em boa parte do Brasil, com a sensação térmica batendo os 60°C. Já sentimos na pele o aquecimento global. Difícil até raciocinar sobre o futuro quando ele já está aqui, nos invadindo pelas portas e janelas.
Longe de abarcar todos os eventos extremos que ocorreram neste ano – e isso só no Brasil, porque no resto do mundo a lista é ainda mais extensa e trágica –, esses exemplos parecem ter dado um chacoalhão na grande imprensa. Com tanta coisa acontecendo ao mesmo tempo, com impactos em setores tão diferentes das nossas vidas, ficou impossível não tratar do assunto.
Não consigo imaginar melhor momento para o que jornalismo sobre esse tema deslanche de vez. Mas não apenas no formato mais clássico, digamos assim, do jornalismo ambiental e /ou de ciência, onde se convencionou posicionar o assunto. Mas em todas as editorias.
Por coincidência, enquanto eu pensava sobre isso para fazer este texto, me deparei com uma entrevista publicada no jornal Folha de S. Paulo que traduz exatamente o sentimento que tenho sobre como a gente deve passar a encarar a questão – o que espero fortemente que comece a ocorrer a partir de 2024.
Trata-se de uma entrevista feita pela colega Patrícia Campos Mello com Kyle Pope, que era publisher do Columbia Journalism Review, a mais respeitada publicação sobre os desafios do jornalismo do mundo. Ele acabou de assumir o cargo de diretor-executivo do Covering Climate Now, uma organização internacional muito bacana, que recomendo a todo mundo aqui que acompanhe, porque eles promovem uma série de cursos e discussões sobre como cobrir a emergência climática.
Pope defende que, mais cedo ou mais tarde, não importa a especialidade original, todos os jornalistas estarão cobrindo a crise do clima, porque basicamente todos os assuntos que nós cobrimos vão acabar de algum modo sendo impactados por ela – ou sendo causa ou sofrendo as consequências da mudança climática.
Como falar de desenvolvimento econômico sem levar em conta que só é possível crescer hoje de uma maneira que não acarrete em mais emissões de gases de efeito estufa? O tema entrou na agenda do governo Lula com o Plano de Transição Ecológica liderado pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad.
Para reportar sobre essa proposta com propriedade, o repórter tradicional de economia e de política não pode só pensar nos velhos indicadores que balizavam as análises econômicas. É preciso entender o contexto muito mais amplo que ele se propõe a resolver. O país, com a proposta, vai crescer de modo a também proteger sua população e seu ambiente das mudanças climáticas?
Como falar de imigração, por exemplo, sem considerar que a elevação do nível do mar, a ocorrência de eventos extremos como secas ou tempestades intensas, os incêndios podem aumentar o número de desabrigados e levar a deslocamentos forçados?
Como falar de saúde sem considerar que condições já existentes podem ser pioradas, por exemplo, pelas ondas de calor?
Um estudo publicado em julho deste ano na revista Nature Medicine estimou que durante a onda de calor que atingiu a Europa no verão de 2022, mais de 61 mil mortes podem ter ocorrido em decorrência das altas temperaturas. Estudos como este demoram um tempo para serem feitos, mas não é difícil imaginar que o verão do hemisfério norte neste ano – o mais quente do registro histórico –, não tenha deixado um número de vítimas igualmente assustador na Europa.
Cabe a nós todos explicar esse novo mundo para as pessoas. Como diz um ambientalista com quem converso bastante aqui no Brasil, não é mais algo para o futuro. Hoje a gente não precisa ler relatórios científicos com previsões futuras, basta abrir a janela para ver as mudanças climáticas em curso.
É meio normal pensar no aquecimento global como a ocorrência de grandes eventos extremos. De episódios trágicos. Mas coisas corriqueiras podem ficar insuportáveis sob temperaturas extremas. Uma simples caminhada, do local de trabalho a um restaurante na hora do almoço, por exemplo, num dia quente demais, pode ser suficiente para um infarto, um AVC.
Crianças poderão ficar uma tarde inteira brincando na rua? A gente ainda vai conseguir passar um dia na praia? Agora, como vai ser a vida de quem trabalha na rua o dia inteiro? Talvez será necessário inverter o dia pela noite e só sair de casa para trabalhar quando o sol se põe.
Trabalhadores do campo, pedreiros, camelôs. Pessoas que às vezes já têm uma realidade precária de saúde, obesidade, sedentarismo, má alimentação, baixo acesso à saúde. Mesmo se não ocorrer algo agudo, como um infarto, quanto o corpo humano vai adoecer aos poucos ao trabalhar sob condições extremas?
Há pesquisas que já relacionam aumento da temperatura com piora da saúde mental e com aumento de internações por alcoolismo, por exemplo. Isso sem contar o aumento dos riscos de doenças transmitidas por mosquitos, do surgimento de novas pandemias. Nosso SUS tem capacidade para lidar com tudo isso?
A própria forma como as nossas sociedades funcionam vão ser impactadas, então como vamos falar, por exemplo, de mercado de trabalho e desigualdade de renda sem considerar o aspecto climático? A injustiça climática – que implica no fato de que os mais pobres e mais vulnerabilizados serão também os mais afetados pelo aquecimento global – vai piorar a injustiça social.
Impossível falar sobre agricultura, sobre as expectativas de safra, sobre seguro rural sem considerar que o setor é um dos mais afetados pelas altas temperaturas e pelos eventos extremos. Além de ser uma das maiores fontes de emissões de gases de efeito estufa no Brasil.
O mesmo vale para as discussões, obviamente, sobre energia e transporte, sobre os planos para investir em petróleo, mas também sobre moradia, sobre gestão das cidades, sobre investimentos em infraestrutura. Não dá para pensar em novas obras levando em conta dados históricos de chuvas, por exemplo, porque o futuro não vai ser como foi o passado.
Durante a onda de calor que atingiu boa parte do país em meados de novembro, a cobertura da Folha de S. Paulo me fez ter a sensação de que talvez esse caminho esteja começando a ser trilhado. A capa da edição impressa de 15 de novembro trazia sete chamadas para reportagens ligadas de algum modo à emergência climática.
A manchete era sobre como o calor fez o consumo de energia bater recorde – texto da editoria de economia. Havia matéria de saúde sobre “o que fazer para o corpo não ferver”. Dois textos mais clássicos de “ambiente” sobre as projeções de o calor continuar no país mesmo sem El Niño e sobre o fogo no Pantanal. E ainda matérias de cidades sobre como as construções de prédios desaprenderam a ser “anti-aquecimento” e quantas pessoas no país estão vivendo sob o alerta máximo de temperatura. Havia ainda uma análise sobre deslocamentos forçados por causa de chuvas, inundações e deslizamentos.
Apesar das péssimas notícias ali reportadas, comemorei internamente a existência dessa capa como um sinal de maturidade da imprensa diante do problema. Outros colegas que cobrem o tema foram mais céticos. Entendem que tão logo a onda de calor passasse, a cobertura, com o perdão do trocadilho, esfriaria: “Até o próximo evento.” A colega Ana Carolina Amaral foi mais certeira: “A imprensa ainda não pauta o clima, apenas é pautada por ele.”
Espero que não seja apenas wishful thinking da minha parte, mas acho que o tema vai se impor. O mundo já é outro e quanto mais cedo o jornalismo entender isso e incorporar isso nas suas reportagens, melhor vamos poder não só cobrar governantes e empresas, mas também ajudar a sociedade a entender isso de modo que ela também possa incorporar a questão em seus planejamentos para a vida, na hora de decidir seu voto.
Virar essa chavinha na mentalidade de como fazemos jornalismo é urgente, porque o tempo para tomar uma atitude que evite o pior das mudanças climáticas é cada vez mais curto.
Como definiu recentemente o secretário-geral da ONU, Antonio Guterres, não é mais a era do aquecimento global. Entramos na era da ebulição global. A gente precisa continuar fazendo todos os esforços para conter esse avanço da temperatura, mas é pra ontem se adaptar a essa nova condição. Inclusive no jornalismo.
Este texto faz parte da série O Jornalismo no Brasil em 2024. A opinião dos autores não necessariamente representa a opinião da Abraji ou do Farol Jornalismo.