Em defesa do jornalismo sem fins de lucro
Apostar em organizações sem fins lucrativos pode ser uma alternativa para garantir um ecossistema de jornalismo capaz de servir o público – para além de interesses individuais ou corporativos
No início de 2016, participei de um evento no Poynter Institute que se chamava Nonprofit News Exchange. Por uma semana, ao lado de mais 20 líderes vindos de vários lugares dos EUA (eu era a única de fora do país), discutimos as questões relativas a este “novo” modelo de aventura jornalística que começava a se consolidar e a crescer. O INN (Institute for Nonprofit News) tinha apenas cinco anos de idade.
Por sete dias inteiros, ouvimos e falamos sobre modelos de gestão e de sustentabilidade deste formato de organização. Na época, duas conversas ficaram gravadas como um bom resumo dos desafios que teríamos pela frente.
Primeiro, a ética não muda: o objetivo de uma empresa jornalística é sempre servir o interesse público. Nem mais nem menos. Manter a independência de interesses coletivos ou individuais e de agendas escondidas atrás de reportagens é um dever para todos que dizem praticar jornalismo independente, com ou sem fins de lucro.
A segunda foi mais impactante para mim, naquela altura: não ter o lucro como objetivo final não significa fazer jornalismo sem dinheiro. Significa apenas que o lucro financeiro não é o objetivo da organização. O objetivo é continuar de pé para continuar servindo o interesse público, ou seja, os recursos financeiros são recorrentemente reinvestidos para manter a roda girando.
Naquele ano, o blog Mural, hospedado na Folha desde 2010, tinha recém-lançado seu site em novembro de 2015, em um mutirão de muito trabalho voluntário, e se rebatizado como Agência Mural de Jornalismo das Periferias. Ainda não tínhamos nos formalizado, éramos apenas um coletivo com uma missão em comum e sem nenhum recurso financeiro. Mas começávamos a pensar em como dar os próximos passos.
Para uma organização que está em seu início, no Brasil, escolher entre se tornar uma organização sem fins lucrativos ou uma empresa envolve mais que questões filosóficas, eu sei. O pragmatismo e o orçamento é que mandam se você não tem um investimento polpudo garantido. Muitas pequenas e inovadoras iniciativas de jornalismo no país nascem como MEI, o status de microempresa individual cujo líder, em geral, segura a onda dos impostos e da contabilidade para poder sobreviver a esta etapa inicial de formalização. Uma empresa maior, apesar de ter mais despesas, tem a facilidade de ser “autocrática” — já pedindo perdão pelo abuso da palavra. Mas é isso: quando seu CNPJ visa o lucro, você tem direito de ter suas contas protegidas pela opacidade da iniciativa privada e a de tomar decisões que só cabem aos proprietários (o formato de cooperativa, neste cenário, poderia ser uma boa alternativa para abrir outra discussão). Na gestão de uma associação sem fins lucrativos — que ainda não é o formato ideal, na minha visão, você tem uma obrigação mínima de transparência e que mais pessoas devem participar das decisões estratégicas da organização.
A criação da possibilidade de uma terceira pessoa jurídica – a de negócio social – poderia estar em discussão já. Na Europa, o reconhecimento desta necessidade data de 2011, e na França, a “empresa social e solidária” ganhou legislação específica em 2016.
Mas além das questões financeiras que regem esta escolha inicial de modelo jurídico, a escolha do caminho a seguir envolve outras discussões. Afinal, o jornalismo, diferente do entretenimento ou de produtos comerciais de informação, não deve servir o interesse público? E o interesse público não pode estar restrito a ser servido por mercados historicamente concentrados em oligopólios ou monopólios, como atestam anualmente os relatórios globais da Repórteres Sem Fronteiras, regidos apenas pelas leis dos modelos econômicos mais liberais. Ou seja, a equação “quanto mais demanda (medidas em cliques), mais oferta (da mesma natureza)” não garante a eficiência deste “produto”.
Aqui temos de dar uns passos ainda mais para trás: na reconstrução do nosso mundo contemporâneo, pós-Segunda Guerra Mundial, quando em 1948 publicamos a Declaração Universal dos Direitos Humanos, já sabíamos que o acesso à informação era um direito a ser defendido. O artigo 19 diz que "Todo ser humano tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferências, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras." Muitos documentos internacionais seguiram a mesma linha depois dele.
Em maio de 2021, uma nova camada de argumentos é adicionada a esta conversa: no 30o aniversário da Declaração de Windhoek, que reforça a necessidade de se defender a liberdade de expressão e o acesso à informação como direito humano, a UNESCO e todos os países membros, que assinaram o documento em unanimidade, reconheciam também a informação como bem público.
E o que é um bem público?
Sem abusar do economês e ao mesmo tempo correndo o risco de ser mais leve do que deveria, há duas características principais que colocam a informação nesta categoria. A primeira é que, uma vez que a prática do jornalismo torna uma informação pública, é difícil impedir que outros tenham acesso a ela. A segunda: quando uma pessoa usa uma informação, isso não reduz sua disponibilidade para os outros. Muitas pessoas podem ler o mesmo artigo, assistir ao mesmo noticiário ou ouvir o mesmo podcast sem limitar o acesso para as demais.
A principal consequência é que os bens públicos muitas vezes são sub-oferecidos em um mercado livre porque é difícil fazer com que as pessoas paguem por algo que podem usar de graça.
Se, portanto, acreditamos que a informação é um bem público, a que todos deve ser garantido o acesso, um sistema que diz que a empresa jornalística deve ser regida pela lógica de mercado, onde a lei da oferta e da demanda sustenta sua “produção”, não pode ser a melhor opção para as audiências, para os cidadãos, para as democracias.
Intervir em um mercado de bem público faz parte da teoria econômica básica. Deixar que o mercado seja o único regulador no caso da informação, fazendo com que a oferta (produção dos meios de comunicação) seja guiada pelas oportunidades financeiras geradas pela demanda (da audiência) é acabar com o que separa o jornalismo do entretenimento ou da propaganda ou simplesmente da consultoria/inteligência/produção de dados.
Se você busca o lucro, é preciso reduzir ao máximo os riscos financeiros deste seu produto, certo? Aí está traduzida a busca sem limites pela audiência crescente, por contratos de publicidade com critérios baixos, a existência justificada de pay-walls (acessa quem pode pagar), etc.
A economista francesa Julia Cagé, autora de “Sauver les médias” (Salvar as mídias) e “L’information est un bien publique” (A informação é um bem público), defende que, sendo a informação um bem público, deixar o mercado regular sua produção pelas leis de oferta e demanda é levar à reconcentração e deixar muitos “consumidores” e “pequenos produtores” longe dele.
A crise do modelo de negócios do jornalismo, onde as grandes operações apontam o dedo acusatório, com razão, para o mercado publicitário “desviado” para as plataformas de tecnologia (a nova rede de distribuição), traz também de volta ao debate o lugar da diversidade da informação e, mais que isso, da desigualdade de acesso a ela.
Ou seja, estou juntando várias ideias aqui: a independência econômica necessária para as organizações de jornalismo funcionarem com independência editorial, a necessidade de intervenção em um mercado que tende à concentração em oligopólios e monopólios, o que o modelo sem fins lucrativos implica para a transparência das organizações, a informação como direito humano e bem público, as desigualdades de produção e acesso à informação que acirram outras desigualdades. Tudo bem até aqui? É sobre esta complexidade que falamos.
Em outubro deste ano (2024), um grupo de 13 grandes organizações de apoio ao jornalismo – entre elas estavam Free Press Unlimited, International Media Support, Center for International Media Assistance, Sembra Media, IREX e Internews – lançou um manifesto pela viabilidade das mídias independentes ao redor do mundo. Nas páginas finais, debaixo do subtítulo de políticas públicas e filantropia, esta nossa discussão aparece resumida em poucas frases: "Alternativas a um sistema de notícias comercial focado na maximização de lucros exigem uma série de respostas, incluindo subsídios, intervenções políticas, o impacto do status de caridade e regulamentação tributária, entre outros. Essas medidas limitam os paradigmas neoliberais que veem as notícias como mercadorias cujo valor é ditado pela rentabilidade."
No editorial da newsletter do Media Finance Monitor, que comenta a publicação, o autor diz que "a própria existência deste documento sinaliza que entramos em território desconhecido, onde as forças de mercado, por si só, já não conseguem sustentar o tipo de ecossistema de informação robusto e independente essencial para uma democracia próspera. O Manifesto reconhece essa nova realidade: em muitos contextos, os modelos tradicionais impulsionados pelo mercado que sustentaram o jornalismo por décadas já não são viáveis."
Se você concorda que a informação de qualidade é um bem público, que deve estar acessível a todos e que só uma sociedade bem informada pode caminhar coletivamente para liderar seu próprio desenvolvimento, sem nem falar explicitamente da escolha democrática, temos de achar um modelo de negócios possível para que os profissionais envolvidos nesta indústria possam continuar fazendo o trabalho de maneira independente.
É preciso lembrar mais uma coisa: democracia é um contexto intimamente ligado à dinâmica da desigualdade. Quanto menor é a elite, menor é o número de pessoas que têm poder econômico (e portanto acesso ao poder político) para tomar decisões que influem na vida coletiva de um país. Quanto menor é a desigualdade, em tese, maior é o número de pessoas que participam destes processos decisórios. E a desigualdade de informação – principalmente de acesso, mas também na produção (vide o problema dos desertos e quase-desertos de notícias!), reforça ainda mais o fosso entre os que têm e os que não têm.
Fui muito longe? Talvez, mas porque o debate é complexo e a crise é aguda. Há opções na mesa, e negócios jornalísticos no Brasil, com e sem fins lucrativos, têm avançado – aos trancos e barrancos. Mas essa conversa é inadiável e precisa acontecer em universidades, em eventos, com governos, com a filantropia, entre as próprias organizações.
Na minha visão, garantir um ecossistema diverso de organizações que existem para servir o público, para além de interesses individuais ou corporativos, tem a ver com lutar contra a desinformação e a falta de confiança das audiências, a concentração dos meios de comunicação e as desigualdades informacionais — apenas para começar esta lista de justificativas. E tem a ver com defender um jornalismo cujo objetivo final não pode ser o lucro.
Este texto faz parte da série O Jornalismo no Brasil em 2025. A opinião dos autores não necessariamente representa a opinião da Abraji ou do Farol Jornalismo.