Jornalismo deve priorizar o humano diante da plataformização imposta pela IA
Em 2025, precisaremos criar diretrizes do fazer jornalístico a partir das Inteligências Artificiais: as IAs devem ser contidas no jornalismo, e não o contrário. O que a IA pode fazer pelo humano?
Todo jornalista gostaria de ter respostas simples aos problemas complexos que se sucedem, como uma espiral de grandes novidades (tecnológicas) sobre sua profissão. E a última tacada dessa sinuca é a tal da Inteligência Artificial (IA) — essa senhora exaurida pela cultura pop e que, agora, adquire nova carruagem com as big techs, sua nova fada madrinha.
Explicar o que é uma IA não é tarefa das mais simples. Assim, é inevitável que jornalistas se assustem com essa tecnologia da informação e comunicação (TIC) encaixapretada e envernizada como “solução para todos os seus problemas”, como um mágico “pó de pirlimpimpim”. No Brasil, estamos longe de uma literacia apropriada sobre essa ‘nova’ etapa do jornalismo, mesmo com 2025 já na esquina. Mas, voltemos ao pulo do grilo: o que é IA? Por ora, fiquemos com a resposta curta: trata-se de um campo multidisciplinar da ciência da computação que se dedica ao desenvolvimento de sistemas e algoritmos capazes de simular comportamentos e ações inteligentes, semelhantes aos humanos. Em outras palavras, é um conjunto de tecnologias com foco na automação de tarefas cognitivas e/ou manuais até então reservadas aos humanos. Sim, como já sabe, muitas tarefas jornalísticas podem ser feitas por uma IA!
No jornalismo, as IA já são usadas há anos, mas passaram a ser “batata da terra” somente com o rápido avanço das IA Generativas (IAG) — subcampo da inteligência artificial com foco na criação de novos conteúdos, como texto, imagens, áudio e vídeo, a partir de dados existentes — a partir do final de 2022. Como resultado, as plataformas estão correndo para consolidar suas IAG no mercado, enquanto jornalistas, por sua vez, estão preocupados com suas cadeiras nas redações. Não trataremos da questão dos empregos. Porém, é importante frisar que a possibilidade mais provável é a de a IA ser cada vez mais utilizada nas redações, mas, nunca só, estará sempre em colaboração com jornalistas humanos. É crível afirmar que o jornalismo profissional manterá o compromisso do olhar humano sobre a notícia, seja para produção, edição ou fact-cheking. Vemos isso à medida que veículos brasileiros, como Grupo Estado e Núcleo Jornalismo, reforçam que seu uso de IA sempre será mediado por um humano.
Como vem a base: IA no jornalismo brasileiro
No Brasil, as IA já são usadas há alguns anos para automatização de tarefas e produção de notícias. Até 2022, iniciativas com IA já eram mais de 45, e, em sua maioria, eram formuladas em uma espécie de comunidade colaborativa de inovação jornalística. IA como a Rosie, do Serenata de Amor, e a Fátima, do Aos Fatos, tinham pedaços, códigos de outras IA, bem como também disponibilizavam seus códigos em repositórios web para que outros jornalistas e veículos pudessem produzir suas próprias iniciativas. Isso contribuiu, embora em marcha lenta, para uma literacia coletiva sobre a utilização de IA em inovações jornalísticas na comunidade local. Foi um momento de integração quase que “orgânico” das IA às redações brasileiras.
10 por meia dúzia: trocando pela plataformização
As plataformas, as big techs, medeiam o jornalismo, assim como a majoritária experiência digital de nossas vidas. ChatGPT (OpenAI / Microsoft), Gemini (Google) são as principais IA plataformizadas disponíveis no mercado e também incorporadas em iniciativas jornalísticas, tanto por sua interface ao usuário final em chat, quanto por meio de suas API, que possibilitam a criação de software baseados em sua tecnologia. No Brasil, bem como em outros países do Sul Global, que não são pátrias-mãe de big techs, estamos mais suscetíveis ao uso de IA plataformizadas devido ao seu custo relativamente baixo de ‘aluguel’ de API, em comparação ao desenvolvimento do zero ou mesmo de manutenção de uma IA própria, ou open source.
Antes das IAG, porém, notamos que as plataformas já eram embarcadas em projetos nacionais de IA jornalísticas, principalmente, por meio do Google News Initiative, Microsoft Journalism Initiative e do Facebook News Project, que custeavam algumas iniciativas brasileiras.
O que acontece agora, no entanto, é a aceleração da plataformização das IA jornalísticas, que deixam de ser baseadas em códigos abertos para adotarem API e códigos fechados das big techs. Dessa forma, é possível que haja uma limitação no desenvolvimento de inovações no uso de inteligência artificial pelo jornalismo brasileiro. Primeiro, as IA plataformizadas são baseadas em empresas do Norte Global, cujos vieses algorítmicos e de dados embarcados, de modo geral, desconsideram o cenário (jornalístico) local. Dessa forma, o cenário que surge é o de uma possível planificação da diversidade de inovações. O mesmo pode-se dizer da qualidade do conteúdo, é plausível que passemos a ver uma horizontalização de sua qualidade — como um espelho: os conteúdos podem parecer cada vez mais similares, não importando o veículo.
Também há questões sobre copyright e segurança da informação jornalística mediadas por essas IA plataformizadas, uma vez que os veículos não têm acesso direto aos seus algoritmos, não conhecem seus vieses e tão pouco podem saber se e como os dados jornalísticos por elas tratadas são coletados pelas big techs para outros fins — lembremos, a título de exemplo, não é incomum venderem dados coletados para terceiros ou mesmo que governos do Norte Global coloquem ‘saídas de dados’ em produtos de suas big techs a título de “segurança nacional” e, assim, terem acesso privilegiado a dados tratados por elas.
As três MarIAs
A respeito do uso propriamente dito das IA pelas redações, podemos ver três vertentes, jornalismo adentro:
IA de Automação: seu foco, geralmente, está em coletar dados e organizá-los em estruturas previamente desenhadas pelas quais jornalistas continuam a produção ou edição de notícias. Muitas dessas IA são bots de alerta de eventos, dados ou checagens de notícias. Se enquadram na concepção já clássica de fazer tarefas que tomam tempo demasiado do jornalista humano. A maioria das IA antes do boom das IA Generativas era desse tipo. A Rosie, a Fátima e o Ruibot são exemplos notórios.
IA Generativa: como sugere a alcunha, parte da geração de notícias em texto, imagens, vídeos, infográficos etc. A partir da concatenação de dados e informações disponíveis em uma ou mais fontes. É a IA que está nos olhos e dedos do grande público. Temos a FátimaGPT e os resumos de “notícias longas” do UOL, bem como a geração de notícias sobre eleições do G1 e UOL como marcadores.
IA de personalização: essa é uma das tendências de IA no jornalismo, sendo uma espécie de cruzamento de automação e geração, e aproveita a expertise das plataformas em personalização de conteúdos e experiências de feed para fazer o mesmo com o conteúdo jornalístico; a personalização aqui é radical, é uma hipersonalização de portais e notícias de acordo com dados dos próprios usuários, que podem fornecê-los aos veículos ou mesmo às plataformas. Essa hipersonalização significa que cada notícia escrita teria potencial de personalização com gostos, interesses, linguagens e experiências de cada usuário / leitor — a tecnologia para isso já está disponível. Nesse tipo de IA, as questões sobre seu impacto recaem, principalmente, na criação de filtros bolhas, não na curadoria da notícia, mas nela própria, em como é ‘editada’ e apresentada para cada usuário conforme sua persona remontada a partir de seus rastros digitais.
De volta para o futuro?
É certo que o que nos aguarda no futuro, a começar por 2025, é uma massificação da plataformização do jornalismo, ainda mais com o espalhamento das IA das big techs nas redações. Mesmo assim, ainda é necessária uma ponte para a literacia de profissionais para compreender como podem trabalhar em parceria com jornalistas robôs. Conhecimento em programação é um saber alternativo, mas conhecimento sobre lógica algorítmica e de IA talvez seja vital.
Mesmo diante das IA Generativas e de hiperpersonalização, as IA de automações ainda têm muito espaço para crescer no jornalismo brasileiro: cata por histórias, coleta de fontes, entrevistas, copilot da produção de textos, imagens e vídeos, checklist dos processos jornalísticos (pesquisa, diversidade de fontes, multimídia, checagem, correções, SEO, shareability, hiperlinks, por exemplo). Essas automações, em sua maioria, são de back-end (fundo), focadas no processo de produção da notícia — colaborando direta e unicamente com jornalistas humanos.
Outra tendência para o ano que vem está na ampliação de IA de front-end (frente), focadas na apresentação, acessibilidade, personalização, espalhamento e interação da notícia e veículos com sua audiência, que pode interagir com notícias por meio de chatbots generativos em portais ou em redes sociais, como o FátimaGPT, dos Aos Fatos, por exemplo.
Não obstante, não podemos fornecer uma previsão precisa sobre como a IA vai reagendar o fazer e a própria existência do jornalismo. Mas não podemos nos apegar, lá na frente, ao “não sei, só sei que foi assim”. O futuro está sendo escrito agora, em tempo real. E o jornalismo, se não teve animosidade até o momento, precisa tê-la agora — para seu próprio bem. É preciso encarar novas diretrizes do fazer jornalístico a partir das Inteligências Artificiais. As IAs devem ser contidas no jornalismo, e não o contrário.
Assim, acredito que o jornalismo profissional brasileiro, portador de recursos escassos, deva adaptar suas demandas e necessidades (e também do público local — que supostamente detém algum conhecimento mínimo) para tentar contornar vieses e outras questões das IA plataformizadas, em um cenário em que é quase impossível escapar das mesmas.
Por fim, devemos focar no humano, e não na tecnologia. A pergunta que tem que ser feita, e que vale para todas as áreas da sociedade, é o que a IA pode fazer pelo humano? Pensar no humano é sempre a resposta mais simples.
Como podemos humanizar o jornalismo (e o acesso a ele) com a ajuda das IA?
Este texto faz parte da série O Jornalismo no Brasil em 2025. A opinião dos autores não necessariamente representa a opinião da Abraji ou do Farol Jornalismo.