NFJ#407 ☀️ Igualdade de gênero avança pouco entre líderes de redações
O papel das plataformas na amplificação das estruturas misóginas | A violência política de gênero | Guias para ChatGPT no jornalismo | Listas de ferramentas de IA | Agenda de eventos para 2023
Buenas, moçada!
Moreno aqui, abrindo mais uma NFJ.
Enquanto o verão se aproxima do fim (mas não aqui em Porto Alegre), vamos entrando no ritmo de 2023. O ano começou melhor do que 2022, vocês não acham? É a minha impressão. Mas uma coisa parece não mudar: aquele paradoxo do tempo em que segunda-feira parece que foi um século atrás ao mesmo tempo que a semana passa voando. Por isso, senhor tão bonito, “peço-te o prazer legítimo e o movimento preciso, de modo que o meu espírito ganhe um brilho definido”, com a licença de Caetano.
Nesta semana temos uma novidade. Enquanto a Lívia se dedica ao Diego — filhote dela que nasceu mês passado — terei o privilégio de dividir a edição da NFJ com Giuliander Carpes. Além de ser um fiel escudeiro e conselheiro desta newsletter há muito tempo, Giuliander é um puta repórter, editor, professor e pesquisador. Chega na NFJ direto da França, de onde voltou recentemente depois de concluir seu doutorado.
Deem boas vindas ao Giuliander!
Antes de começar, deixem eu indicar um conteúdo dos nossos parceiros da ServerDo.in sobre como fazer um media kit para o seu portal de conteúdo.
Agora sim. Bora. MO pra mim. GC pro Giuliander.
☀️ #8M: um dia de luta. Nessa semana tivemos mais um Dia Internacional da Mulher, data que podia muito bem ter o seu nome trocado pela ONU para Dia Internacional de Luta pela Igualdade de Gênero ou algo que o valha. Talvez a mudança pudesse evitar que gestores de recursos humanos mundo afora ainda passassem pelo constrangimento, em pleno 2023, de presentear as funcionárias com flores e cartões de parabéns, enquanto elas ainda recebem uma remuneração menor do que os homens para realizar os mesmos trabalhos. Segundo o IBGE, uma mulher brasileira hoje recebe, em média, apenas 78% do salário de um homem na mesma função. Nos Estados Unidos, a situação não é muito melhor (82% do salário), e o que os americanos chamam de "gender pay gap" permaneceu estável nas últimas duas décadas, segundo o Pew Research Center. Isso acontece mesmo que as mulheres tenham procurado se qualificar melhor tanto para o mercado de trabalho quanto para o setor acadêmico: pelo menos desde 2010, elas já são a maioria das pessoas que concluem mestrado e doutorado no Brasil: ou seja, 72,7% dos novos mestres e 53,1% dos novos doutores, considerando os inscritos na plataforma Lattes (Nexo).
Como de costume em relação a efemérides, a imprensa brasileira tentou aproveitar o 8 de março para emplacar reportagens especiais sobre o assunto da desigualdade de gênero para fomentar alguma reflexão e discussão. A Folha de S. Paulo, por exemplo, dedicou a maior parte das suas manchetes de capa do dia ao tema, chamando atenção para a estatística de que apenas quatro mulheres estiveram na cúpula dos três poderes da República desde a redemocratização em 1985 — 66 homens chefiaram o executivo, o legislativo e o judiciário brasileiros no mesmo período, uma proporção de 16,5 para 1. Dilma Rousseff foi a única mulher eleita presidente da República, ocupando o cargo entre 2010 e 2016, quando sofreu impeachment por parte de um poder legislativo que nunca contou com uma representação feminina na sua presidência tanto na Câmara dos Deputados quanto no Senado. O judiciário é o poder que mais contou com presidentes mulheres: Ellen Gracie, Cármen Lúcia e Rosa Weber, nomeadas para o Supremo Tribunal Federal entre 2001 e 2011. A ministra do planejamento Simone Tebet (MDB) deu uma entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo em que anunciou uma multa maior a empresas que pagam salários diferentes a homens e mulheres na mesma função. A cobertura sobre o Dia da Mulher varou o dia seguinte na esteira do anúncio desse projeto de lei por parte do presidente Lula. (GC)
☀️ Mulheres no jornalismo. Se a política e o mercado de trabalho de uma forma geral ainda são dominados pelos homens, isso não seria diferente no jornalismo, certo? Na verdade, a desigualdade de gênero nas redações é até pior. O Reuters Institute for the Study of Journalism publicou uma pesquisa que mostra que somente 22% dos 180 editores principais de 240 publicações analisadas em 12 países, incluindo o Brasil, são mulheres (ano passado o percentual era de 21%, conforme noticiamos na NFJ#361) — elas representam 40% da totalidade dos jornalistas dessas organizações.
A porcentagem de mulheres em altos cargos editoriais varia significativamente nesses 12 mercados: enquanto nos Estados Unidos elas ocupam 44% dos cargos de chefia, no México elas estão em apenas 5% desses postos. O Brasil (13%) tem uma taxa semelhante ao Quênia (13%), à Coreia do Sul (14%) e ao Japão (17%) e foi um dos países em que as mulheres têm ocupado menos cargos de chefia nas redações desde a emergência da pandemia de covid-19 em 2020. Feito anualmente desde 2020, o estudo não encontrou nenhuma tendência maior em direção à igualdade de gênero nas principais funções do jornalismo.
Em um post no LinkedIn, a consultora de comunicação e doutoranda Luiza Bodenmüller tentou mostrar um pouco de otimismo num cenário em geral desanimador:
"Seria ótimo ter acesso a essas informações e compará-las aos dados do jornalismo independente, onde a liderança feminina é bem mais marcante do que no jornalismo de legado. Além disso, seria ótimo ver quantas destas jornalistas brasileiras em cargos de liderança são mulheres negras."
Fica a ideia para futuras pesquisas.
Para completar, o trabalho de jornalista em si tende a ser mais complicado para as mulheres do que para os homens. Na verdade, os homens são os responsáveis por essa situação. Segundo uma pesquisa da ONG britânica Women in Journalism (WIJ) em parceria com o grupo de comunicação Reach, um quarto das jornalistas do Reino Unido conta ter sofrido algum tipo de assédio sexual ou violência sexual em relação ao seu trabalho. Três quartos disseram que experimentaram uma ameaça ou desafio à sua segurança e quase um quinto considerou deixar o setor completamente. A presidente do Comitê para a Proteção dos Jornalistas (CPJ), Jodie Ginsberg, também responsabiliza as plataformas, por onde boa parte das ameaças ao trabalho das jornalistas tem ocorrido.
Vejam o que ela disse numa série de tuítes:


"As plataformas amplificam as estruturas misóginas. Mulheres foram mortas como resultado de mentiras deliberadamente espalhadas sobre elas nas redes sociais. Fracas promessas de ação por parte dos Estados não são suficientes. Estou cansada de nos perguntarem o que pode ser feito para impedir isso. Nós já lhes dissemos. Plataformas: implementem medidas para impedir a amplificação do abuso. Reguladores: punam aqueles que não tratam da amplificação. Empregadores: apoiem suas funcionárias que enfrentam abusos. Todos: não abusem das mulheres."
☀️ Desinformação e violência de gênero. A pesquisadora Kristina Wilfore, professora adjunta da George Washington University, dos Estados Unidos, disse, em entrevista para a Lupa, que as plataformas lucram com a desinformação de gênero, uma forma específica de desinformação que se baseia em quatro ideias principais: a de que as mulheres são desqualificadas; de que não são confiáveis; que são desagradáveis; e que não têm controle emocional. Segundo ela, as plataformas amplificam essas ideias ao propagar esse tipo de conteúdo e inclusive monetizar canais que o difundem. O Aos Fatos adentrou na "machosfera" e chegou a resultados que corroboram as observações de Wilfore. Um levantamento do radar Aos Fatos analisou 80 canais no YouTube e 20 no TikTok e revelou que o uso de termos misóginos para se referir às mulheres corre solto em comunidades que vieram à tona após o episódio envolvendo o "coach de masculindade" Thiago Schutz. Segundo a reportagem que sintetiza os resultados, "dos 80 canais de YouTube analisados, 35 são monetizados pela própria plataforma com anúncios e programa de assinaturas". Além disso, "outros 36 utilizam diferentes estratégias, como vendas de cursos e de ebooks".
A misoginia baseada na desinformação também é comum na política, a gente sabe. Para a ex-deputada federal e cientista política Áurea Carolina, a desinformação de gênero agrava a violência de gênero. Uma das poucas parlamentares negras no mandato de 2019 a 2022 — ela optou por não concorrer à reeleição —, Carolina relatou à Agência Lupa casos de assédio e tentativas de silenciamento. "É uma violência tipicamente programada para nos expulsar desses espaços. Claro que isso não é pensado conscientemente. Essa intenção não está dada. Mas de forma sistêmica, esse é o jogo", afirmou. Esse modus operandi fica evidente em outro levantamento dos Aos Fatos. Ao acompanhar 253 grupos de WhatsApp entre janeiro de 2022 e março deste ano, a reportagem de Ethel Rudnitzki e João Barbosa revelou que "correntes que citam de forma depreciativa 20 mulheres em evidência no cenário político atual – de direita, centro e esquerda — foram compartilhadas mais de 1.300 vezes". (GC e MO)
☀️ ChatGPT para jornalistas. Olhem que preciosidade: um handbook sobre jornalismo local e ChatGPT. Criado por Joe Amditis, a publicação tem o objetivo de orientar pequenas redações e sites locais a usar o serviço da Open IA para melhorar seus fluxos, incrementar seus produtos e aumentar a eficiência. O livro oferece uma lista com potenciais operações que o ChatGPT é capaz de fazer, faz obervações sobre suas limitações (destaque para a questão do viés causado pelos dados de treinamento, assunto da NFJ da semana passada) e ajuda a avaliar a qualidade do conteúdo gerado por IA. Outra seção interessnate do livro é a que orienta a fazer boas perguntas. Segundo Amditis, um bom prompt deve ser claro, específico e relevante, e que uma abordagem típica ao ChatGPT consiste em dois componentes básicos: a questão e o contexto. "O texto do prompt é uma pergunta ou declaração fornecida ao modelo ChatGPT para gerar uma resposta. O contexto é qualquer informação relevante que pode ajudar o modelo a gerar uma resposta mais precisa", escreveu. O legal é que depois ele dá exemplos de bons prompts e os analiza, mostrando acertos e erros. Amditis termina o livro com uma mensagem otimista: "Espero que você esteja tão empolgado quanto eu com o potencial dessa tecnologia para transformar a maneira como abordamos o jornalismo local e outros campos profissionais."
Mais um guia: Inteligencia artificial para periodistas.
E outra: 12 formas de usar IA, por Jeremy Caplan. (MO)
☀️ IA e suas armadilhas. O Press Gazette publicou um artigo de um advogado sobre eventuais armadilhas éticas e legais ocasionadas pelo uso de ChatGPT e outras inteligências artificiais no jornalismo. JJ Shaw lança uma série de alertas sobre propriedade intelectual, desinformação e responsabilidades sobre os conteúdos. Vejam o que ele diz a respeito das brechas que IAs podem abrir a respeito da "originalidade" de suas publicações.
"As redações devem estar atentas ao fato de que o conteúdo gerado por IA aparentemente ‘original’ pode ser fortemente influenciado — ou copiado diretamente — por terceiros sem a sua permissão. Aliás, os termos e condições das principais plataformas de IA não oferecem garantias de que o resultado final de suas produções não cometerá violações legais, deixando as redações desprotegidas caso um autor prejudicado as processem por violação de propriedade intelectual."
Sobre isso, deem uma olhada neste artigo do Nieman Lab sobre como a Wired está tentando usar tecnologias de IA de maneira ética e transparente. Novamente pedi uma ajudinha para o ChatGPT para destacar os principais pontos do artigo. Das Observações que recebi de retorno da IA, destaco as seguintes, as quais adaptei:
Wired não usará IA para gerar ou editar textos, nem gerar imagens ou vídeos;
A revista vai proibir a produção de conteúdo plagiado por meio da IA — casos serão tratados como um plágio de escrita normal.
A publicação vai permitir, por outro lado, que a IA sugira manchetes ou posts em redes sociais, e também seja usada para gerar ideias para matérias.
Se quiserem ler mais sobre as políticas da Wired, deem uma olhada na última Tendenci@as, newsletter de Ismael Nafría sobre jornalismo.
O otimismo de Amditis que vimos acima não encontra respaldo no artigo de Nia Springer-Norris, que pesquisa o uso de tecnologia, especialmente a IA, no jornalismo, para o site do Reynolds Journalism Institute. Springer-Norris cita os mesmos dilemas éticos que evidenciei na news passada sobre o treinamento das IAs, e sublinha o viés racial, de gênero, de linguagem que ferramentas como o ChatGPT podem apresentar.
E termina o texto assim:
"Quando comecei a pesquisar, eu curtia a ideia de IA + colaboração humana. Agora, não tenho tanta certeza de que as empresas de notícias darão às pessoas a oportunidade para pensar de forma mais criativa quando podem simplesmente substituí-las por máquinas e fornecer um serviço menos humano. Porque as máquinas poderiam facilmente reunir todas as informações necessárias para informar o público sem qualquer tipo de preocupação narrativa."
A ver o que vai rolar, mas pelo menos os jornalistas das publicações britânicas Daily Mirror e Express não precisam se preocupar. Foi o que disse o chefe deles depois de publicar a primeira matéria produzida por IA — uma lista sobre coisas legais para fazer em Newport. Mas os jornalistas já estão com medo de passaralhos. Pra fechar, uma lista de ferramentas de IA que não envolvem redação de texto, no IJNet. (MO)
☀️ Links diversos. Uma agenda com eventos de mídia e jornalismo em 2023 [Journalism.co.uk]. | Instituto Vladimir Herzog derrota Bolsonaro na Justiça [IVH]. | ObjETHOS tem vaga para doutoranda ou doutorando [ObjETHOS]. | Jornalistas detalham denúncias de assédio moral na UESB [Conquista Repórter]. | LJR entrevista o jornalista cubano Abraham Jimenez Enoa sobre a ameaça ao jornalismo na ilha [LJR]. | Lista de documentários indicados aos Oscar [GIJN]. | Atlas da Notícia está em busca de voluntários [LinkedIn]. | Os sites de notícias mais populares do mundo em janeiro de 2023 [Press Gazette]. Meetups sobre newsletters [ONA]. | Quatro lições que repórteres investigativas aprenderam com seus erros [GIJN]. | Estudo recente sobre a importância das redes sociais e aplicativos de mensagens para a eleição de Bolsonaro em 2018 [Scielo]. | Entrevista com Hélio Doyle, presidente da EBC [LJR]. | David Kaplan e o futuro do jornalismo investigativo [GIJN]. (MO)
É isso, moçada!
Bom final de semana!
Moreno e Giuliander
Nosso agradecimento de <3 vai para:
Adriana Martorano Vieira, André Caramante, Andrei Rossetto, Antonio Napole, Ariane Camilo Pinheiro Alves, Ben Hur Demeneck, Bernardete Melo de Cruz, Bibiana Osório, Caio Maia, Cristiane Lindemann, Davi Souza Monteiro de Barros, Diego Freitas Furtado, Edimilson do Amaral Donini, FêCris Vasconcellos, Filipe Techera, Gabriela Favre, Guilherme Nagamine, João Vicente Ribas, Jonas Gonçalves da Silva, Luiza Bandeira, Marcela Duarte, Marco Túlio Pires, Mateus Marcel Netzel, Nadia Leal, Pedro Luiz da Silveira Osório, Priscila dos Santos Pacheco, Rafael Paes Henriques, Regina Bochicchio, Roberto Nogueira Gerosa, Roberto Villar Belmonte, Rodrigo Muzell, Rogerio Christofoletti, Roogério Lauback, Rose Angélica do Nascimento, Samanta Dias do Carmo, Sérgio Lüdtke, Silvio Sodré, Suzana Oliveira Barbosa, Sylvio Romero Corrêa da Costa, Taís Seibt, Vinicius Luiz Tondolo, Washington José de Souza Filho.
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