Os territórios podem restabelecer a confiança no jornalismo em 2025?
Território não é só o chão em que a gente pisa: para que as pessoas se sintam representadas, o jornalismo precisa deixar pra trás o distanciamento asséptico e construir vínculos com o público
A névoa no horizonte mal permite diferenciar o que é o céu ou a represa Billings, maior reservatório de água em área urbana do mundo. Da janela do escritório, vejo cair sobre os telhados uma garoa fina e persistente, enquanto as luzes dos carros movimentam-se em câmera lenta – sinal de que a avenida Belmira Marin está travada, como de costume. Vai ser difícil para muita gente conseguir chegar em casa hoje.
Escrevo do Grajaú, localizado a mais de 30 quilômetros do centro de São Paulo, no extremo sul da capital paulista. Como lembra o conterrâneo Mauro Neri, grafiteiro do coletivo Imargem, estamos onde a cidade e a floresta se encontram. O Grajaú não é só o distrito mais populoso da cidade mais populosa do hemisfério sul. É meu território. Ou mais: “Grajaú é meu País”, como diz outra conterrânea, a professora e escritora Maria Vilani, matriarca da luta pela cultura neste canto do mundo.
Faço essa longa introdução para indicar meu lugar no mundo, porque é a partir daqui que elaboro sobre jornalismo territorializado. Daqui, me articulo com jornalistas e iniciativas de comunicação de diferentes territórios deste país, sejam periferias, favelas, comunidades, aglomerados, quilombos, aldeias, entre outras nomenclaturas adotadas. Afinal, como ensinou o saudoso poeta Marco Pezão, “nóis é ponte e atravessa qualquer rio”.
Peço licença a essas tantas pessoas para falar de algumas experiências, muitas das quais são coletivas, ainda que não seja possível colocá-las em caixinhas pois “cada favelado é um universo em crise” (Racionais MCs, “Da Ponte pra Cá”).
De que território estamos falando?
Território pode ser um bairro, uma cidade ou um país. Porém, é mais do que um limite estabelecido com linhas imaginárias pela burocracia.
O geógrafo Milton Santos (1999) nos ensina que território é “o chão mais a identidade”, ou seja: não é só o chão em que a gente pisa, mas o conjunto das relações sociais, econômicas, artísticas, afetivas que estabelecemos a cada passo que damos. É a encruzilhada entre vivências, poderes, forças e fraquezas humanas.
Quando era criança nos anos 1990 na periferia de São Paulo, a gente vivia com índices absurdos de violência. Era preciso ler o território para saber em quais ruas podíamos passar com mais segurança. O caminho da escola não era só risco: também tinha o pé de amora que era ponto de parada obrigatório; ou a quitanda que vendia doces.
À medida que o tempo passou, esse território foi mudando com influências de quem chegou ou saiu e voltou com experiências de outros lugares.
O que o jornalismo tem a ver com isso?
Anualmente, estudos sinalizam a perda de confiança do público no jornalismo, enquanto disputamos credibilidade com familiares do grupo de WhatsApp ou influencers de diferentes especialidades que falam com a audiência sem precisar de intermediário. As pessoas não se sentem representadas, evitam o noticiário para preservar a saúde mental e se aconchegam em suas caixas de ressonância.
Na busca pelo distanciamento necessário para se contar uma história, em muitos casos o jornalismo tradicional se torna asséptico. O veículo de comunicação e próprio jornalista são tidos como alienígenas, pois não estabelecem vínculos com o território.
Experiências de outras áreas mostram que é possível atuar profissionalmente e criar esse vínculo.
No Sistema Único de Saúde (SUS), os Agentes Comunitários de Saúde (ACS) são figuras centrais para executar a Estratégia de Saúde da Família. Um dos critérios para esse trabalho é viver na mesma comunidade de abrangência da unidade básica de saúde. Essas pessoas conhecem cada beco, viela, escadão ou ribeirão para chegar até a casa de pacientes, que recebem visitas periódicas porta a porta (muitas vezes com bolo e café) para atualizar indicadores de saúde, agendar consultas, exames e outros procedimentos. Isso direciona boa parte das ações do postinho de saúde, para adaptar e responder às demandas daquele território e que muitas vezes dependem de busca ativa.
Falta ao jornalismo realizar uma “busca ativa” de seu público?
Muita gente só tinha visto um jornalista quando acontecia uma tragédia – às vezes, ele nem aparecia na quebrada, porque o bairro era retratado do alto de um helicóptero.
Isso tem mudado nas últimas décadas graças ao maior acesso ao ensino superior, proporcionado por políticas de cotas ou o ProUni, e ao avanço das tecnologias digitais, que baratearam a produção e facilitaram a conexão entre diferentes profissionais. A transformação acontece, inclusive, nos meios tradicionais.
E aqui, eu empresto a fala de outra referência periférica. O poeta Sérgio Vaz, cofundador da Cooperifa, diz que o sarau revolucionário que ajudou a criar na zona sul paulistana em 2000 “tirou a poesia do pedestal e fez ela beijar os pés da comunidade”. Em 15 anos de experiência no jornalismo de quebrada, completados este ano com a Periferia em Movimento, eu faço uma relação da compreensão de Vaz com o nosso fazer: os veículos de comunicação de periferias e favelas também ajudaram a tirar o jornalismo do pedestal.
Em São Paulo, a Agência Mural mantém mais de 70 correspondentes em diferentes periferias paulistanas. Na minha visão, é uma iniciativa que vai além do jornalismo local. São pessoas que vivem e são forjadas nesses lugares, e narram histórias a partir disso. Já o Desenrola e Não me Enrola utiliza os territórios como plataforma de aprendizagem no programa de educação midiática Você, Repórter da Periferia, que já formou dezenas de jovens – muitos dos quais começaram a trabalhar com a comunicação.
Na Rocinha, no Rio de Janeiro, a própria equipe do Fala Roça participa da distribuição do jornal. Em uma caminhada com Michel Silva ou outro integrante pela favela para ir ao mercado, somos abordados por pessoas sugerindo pauta. Em Recife, o Sargento Perifa reúne de obreira de igreja a assistente social em ações que extrapolam a produção jornalística, desde escolinha de futebol a bloco carnavalesco. Em Florianópolis, o recém-fundado Desterro se articula com movimentos sociais negros e periféricos para denunciar a violência nos morros da dita “capital mais segura do País”. No interior do Pará, o Coletivo Jovem Tapajônico utiliza WhatsApp e alto-falantes para transmitir informação em áudio a comunidades indígenas e ribeirinhas.
De volta a São Paulo, a Periferia em Movimento (mídia da qual eu faço parte) tem uma área de “articulação territorial” voltada exclusivamente para acompanhar debates e reuniões de movimentos sociais, coletivos, organizações e mobilizações em periferias paulistanas. A partir desse contato diário, elaboramos pautas ou propostas de educação midiática, como cursos e oficinas.
E para distribuir conteúdos de mídias periféricas a um público que se informa principalmente por TV e WhatsApp, desde 2021, o Território da Notícia instalou telas de sinalização digital em comércios de grande fluxo em bairros periféricos de São Paulo. Hoje, são 16 telas em funcionamento nas zonas leste, norte e sul, que entregam reportagens de 14 mídias parceiras para cerca de 300 mil pessoas por mês.
Jornalismo territorializado não parece algo novo. E de fato não é. Estamos resgatando conceitos elementares do jornalismo e aplicando conhecimentos sobre gestão de produto e relacionamento com a audiência. Mais do que isso, compreendemos que é necessário partir do território, que vai indicar o que e como devemos atuar.
Muito do que os veículos jornalísticos fundados em periferias e favelas fazem está calcado na falta dessa relação anterior. Com poucas referências na área, a gente se baseou nos aprendizados do hip hop (“a nossa CNN”), da literatura marginal e nas experiências de movimentos sociais e coletivos que nos formaram enquanto “sujeitos periféricos” (na definição de Tiarajú Pablo D’Andrea).
Os jornalismos
No dia 29 de outubro, a comunicadora comunitária e jornalista Gizele Martins recebeu o Prêmio Vladimir Herzog por seu trabalho a partir da favela da Maré, no Rio de Janeiro. Em seu discurso, a Gizele chamou a atenção para os “jornalismos brasileiros”, que bebem de uma fonte ancestral.
O jornalismo territorializado é, sobretudo, ancestral porque os territórios são ancestrais.
“Temos que inverter a lógica e dizer que o jornalismo de favela, de periferias, do campo, quilombolas e de aldeias é e deve ser reconhecido como os ‘jornalismos brasileiros’. Nós somos maioria nesse País. Nosso jornalismo é ético, tem sotaque, é vivo, é comunidade e é comunitário”, disse ela, em seu discurso.
A Gizele é co-fundadora e integrante da Coalizão de Mídias Periféricas, Faveladas, Quilombolas e Indígenas, uma organização fundada no início de 2023 que agrega 11 iniciativas de seis estados brasileiros. Além da Periferia em Movimento e do Desenrola e Não Me Enrola, também é composta por A Terceira Margem da Rua (de São Paulo); Frente de Mobilização da Maré e Fala Roça (do Rio); Rede Tumulto (Pernambuco); Mojubá Mídias e Conexões (Bahia); TV Comunidades e TV Quilombo (Maranhão); Coletivo Jovem Tapajônico (Pará); e do Coletivo de Comunicação da CONAQ (presente em todo o Brasil).
Diante das discussões sobre o futuro do jornalismo e a circulação crescente de fake news, as mídias que integram a Coalizão apontam um desafio anterior: o combate ao racismo digital, que afeta prioritariamente a população negra e indígena. E para isso, reúnem soluções tecnológicas ancestrais para produzir e distribuir informação de interesse público para quem vive em contextos sociais em que a internet é precária ou inexistente, por meio dos conteúdos jornalísticos e da educação midiática.
Lembra dos agentes comunitários de saúde? A Coalizão de Mídias se articula e defende a instituição de uma política pública de agentes comunitários de comunicação, que assim como os ACS devem atuar diretamente nesses territórios promovendo o direito à comunicação a partir das especificidades locais.
Territorialize-se
Assim como o homem branco, cis, hétero não é universal, os bairros ricos ou centrais das capitais do sul ou sudeste também não são universais. São territórios.
Enquanto eu escrevo da margem da Billings, há colegas que trabalham na Folha de S. Paulo. Mas, em muitos casos, essas pessoas e o próprio veículo não se relacionam com aquele entorno, que abrange também a chamada Cracolândia – em geral, retratada com o distanciamento defendido para preservar a falsa isenção jornalística.
Um dos papéis do jornalismo é intermediar diferentes realidades, portanto é fundamental que exista a liberdade de circulação de profissionais em vários ambientes e localidades para cumprir sua função. E eu concordo com isso. Mas também resgato a importância de identificar e fortalecer o vínculo com seus principais territórios de atuação. Isso possibilita uma construção coletiva da pauta, em que o jornalista atua como mediador. O território é o que valida ou não nossa prática.
O teórico Muniz Sodré diz que a comunicação é “produção de vínculos”. E em uma aula com a pesquisadora Rosane Borges, ela complementa que o vínculo só é possível com semelhantes. E sem vínculo, não há afeto – o que abre espaço para todo tipo de barbárie.
Para estabelecer vínculos, é preciso romper as barreiras das redações físicas ou digitais. É preciso se territorializar, mesmo que seja um veículo de abrangência nacional.
Acompanhar periodicamente um grupo de professores, fóruns de artistas, um movimento de luta por moradia ou uma comunidade religiosa sem a obrigatoriedade de executar uma pauta imediatamente podem ampliar a compreensão que temos sobre diversos assuntos. Oferecer uma oficina de comunicação sobre um tema ou formato do qual você entende muito a um grupo de adolescentes certamente vai gerar uma série de questionamentos e insights, inclusive se a prática é a mais adequada.
Fundado sob a liderança de Eliane Brum, premiada jornalista sudestina, a Sumaúma é uma iniciativa sediada em Altamira (PA) que não fala da Amazônia apenas na ótica da necessária preservação ambiental em meio à crise climática, mas narra essas questões a partir de quem vive a realidade do bioma. E tem um projeto em específico muito interessante de “territorialização” (ou “amazonização”, como defendem em manifesto): é o Micélio, um programa de co-formação de jornalistas-floresta para contribuir com a redação do veículo ou de outras agências de jornalismo.
Na primeira edição, entre 2023 e 2024, 14 pessoas da região do Médio Xingu (entre indígenas, quilombolas, pescadoras, beradeiras ou jovens de periferias de Altamira) participaram de imersões na floresta e na cidade e foram acompanhadas por jornalistas seniores na produção de conteúdos. Na segunda edição, o programa se estende para toda a Amazônia Legal.
O Micélio é um projeto interessante por conectar diferentes territórios em uma área de abrangência que é muito maior do que uma favela, um bairro ou uma cidade, e por mostrar que muita coisa é possível quando se faz coletivamente. “No sapatinho eu vou pra chegar e conquistar respeito”, como canta o rapper Criolo.
São muitas oportunidades, mas não posso mentir dizendo que é fácil ou simples.
Em tempos em que os recursos ficam mais escassos, as redações estão mais enxutas e a pressão por produzir é cada vez maior, investir na relação com o território parece custoso e com resultados pouco nítidos que só vão aparecer a longo prazo. A articulação pode resultar em uma série de novas demandas que certamente vão aparecer e impactar a saúde mental da equipe. Por fim, não é simples escalar uma metodologia que precisa ser refinada e adaptada em cada território. Como resolver esses pontos é uma pergunta para a qual eu também busco uma resposta.
Por outro lado, territorializar nosso jornalismo pode refazer os vínculos e restabelecer a confiança da audiência. O território democratiza o acesso à informação, resgata a humanidade do nosso fazer e a nossa própria humanidade diante do público. É tecnologia ancestral. Territorialize-se!
Este texto faz parte da série O Jornalismo no Brasil em 2025. A opinião dos autores não necessariamente representa a opinião da Abraji ou do Farol Jornalismo.