Para incorporar IA como ferramenta, jornalismo precisará reafirmar sua essência
O avanço da IA vai exigir do jornalismo uma mediação mais qualificada entre os acontecimentos e a audiência, modernização da linguagem e uma relação mais estreita com o seu público
O jornalismo chega a 2025 com heranças: o hype da inteligência artificial com os modelos de linguagem generativa, e a agitação social decorrente de um 2024 repleto de acontecimentos político-eleitorais, ameaças aos regimes democráticos, guerras diversas, eventos climáticos, crise ambiental. De algum modo, a inteligência artificial esteve presente seja mediando, seja midiatizando nossa relação com os meios digitais.
Embora pareça que os modelos de inteligência artificial representem soluções para tudo e todos na indústria da mídia, o equilíbrio pede um olhar para além de uma reconfiguração de processos, de posicionamentos e de legitimação da atividade jornalística, beneficiada pelas tecnologias de inteligência artificial (aqui entendidas de forma genérica).
Que tal iniciarmos 2025 com um melhor entendimento dos sistemas generativos e respectivos impactos nas redações? O pesquisador Nico Diakopoulos afirma que a evolução dos modelos generativos pede uma revisão e um alargamento das estratégias do negócio jornalístico para os usos específicos de sistemas baseados em inteligência artificial e sua respectiva normatização. Ele sugere alguns pontos para pensarmos:
Empoderamento dos jornalistas e editores em suas habilidades de selecionar ferramentas de IA relevantes à contextualização dos acontecimentos e adaptáveis à maioria das redações;
Definição do que seja qualidade das respostas destas ferramentas aos interesses editoriais;
Alinhamento ético tanto para o próprio fazer jornalístico quanto para a audiência.
A inteligência artificial não substitui (e nem irá) o jornalista com suas habilidades e competências de narrar, criar imagens, iluminar as mentes.
Junto com a IA, além das conhecidas vantagens – e também além das discussões entre os apocalípticos e aqueles integrados (graças a Umberto Eco!!) –, há uma enormidade de aspectos e vulnerabilidades, como produção de deepfakes, SCAM’s, desinformações, uso de sistemas invasores de celulares, de estruturas computacionais, e de bases de dados – apenas pra citar os mais evidentes. Ao considerarmos o que vem adiante, será necessária uma preparação de profissionais, técnicos e redações para segurança pessoal e de dados. Ou seja, treinamentos e mais treinamentos que exigem investimentos.
Já que abordamos a segurança é preciso ampliar o entendimento para a proteção dos profissionais diante de assédios físicos e digitais, em processos de trabalho ou na vida pessoal, no interior das redações e nas coberturas externas. É uma premissa que, novamente, requer treinamentos, investimentos e posicionamentos firmes das empresas informativas. Sim, a inteligência artificial pode apoiar neste quesito: um recente relatório da UNESCO pontua uma governança por parte das empresas jornalísticas orientada pelos princípios dos direitos humanos, garantindo transparência do conteúdo produzido por IA e sua autenticidade, além de políticas claras para as redações quanto aos múltiplos aspectos de (in)segurança e o enquadramento dos direitos autorais.
A qualidade de conteúdo e de resultados de buscas, listas e demais funcionalidades dos modelos generativos implica numa reconfiguração das narrativas de forma a alimentar adequadamente tais sistemas. Com isso, o jornalismo em 2025 pede narrativas que tenham cada vez mais um papel de mediação qualitativa entre acontecimentos e audiências e menos conteúdos que estimulem a midiatização e os clickbaits.
Conteúdo de qualidade como instrutor dos modelos generativos de inteligência artificial e, consequentemente, como construtor da opinião coletiva pede um passo além no aprimoramento dos processos de produção de conteúdo e aqueles de relacionamentos com públicos diversos.
A inteligência artificial se alimenta daquilo que lhe é oferecido, portanto o jornalismo tem diante de si muitas possibilidades e responsabilidades relativas ao binômio produto-audiência criadas a partir da narrativa-conteúdo.
Há que se levar em conta uma camada adicional – o produto jornalístico e seu gestor (o product manager), que tem a função de reconhecer e resolver um problema/necessidade identificado num público definido. Este trabalho exige empatia com os usuários para delinear, identificar problemas e definir possíveis soluções, prototipar e testar hipóteses, desenvolver uma solução, lançá-la e iterá-la, ou seja, melhorá-la ao longo do tempo através da coleta de métricas e feedback constante. É um papel que deve integrar a rotina da redação, mas que ainda encontra resistência em determinadas culturas. Os modelos generativos irão melhorar em muito suas performances.
É aqui que se destaca a urgente necessidade das empresas jornalísticas em conhecer seu público, em entender diferenças entre público e audiência como forma de estabelecer uma conexão entre o conteúdo, a alimentação dos sistemas de inteligência artificial, a construção de produtos a partir do conteúdo e a geração de resultados, seja para a legitimidade da marca, seja para o negócio.
Conhecer os públicos é uma tendência a ser concretizada com urgência. É um processo contínuo que vai muito além dos números de visitas e outras métricas. Também vai além das pesquisas de audiência/mercado ou da mera alimentação de bancos de dados de assinantes. Falamos de acompanhar as transformações comportamentais de cada segmento de interesse, como consomem informações, por quais canais entendem os acontecimentos e como tudo isso é absorvido pelo público. A proposta apresentada pela News Product Alliance é interessante: esforços de dissociação do público daquelas tarefas típicas dos dispositivos móveis como troca de mensagens, assistir a vídeos e games e capturar a atenção para o conteúdo noticioso; da relação com fontes de informação não jornalísticas como se legitimas; e da aderência às opiniões alheias que circulam nas redes.
Os públicos contemporâneos conectados, que circulam por meio das plataformas sociais que são completamente algoritimizadas tendem, segundo a professora Letícia Cesarino, a desacreditar no jornalismo como referência central. Além disso, são conduzidos pela inteligência plataformizada, mergulhando em processos antiestruturais em que o indivíduo, suas opiniões e afetos passam a ser centrais na lógica social. Aqui cabe ao jornalismo buscar processos reversos e mimetizar-se a tais processos na (re)conquista do público – com a ajuda dos sistemas de inteligência generativa.
Por outro lado, o cenário que se apresenta requer o estabelecimento de vínculos efetivos com a ética, a diversidade e inclusão e a formação de públicos futuros. O gap de gênero e de raça nas redações é evidente, não só para mulheres, mas especialmente para pessoas LGBTQIA+. A jornalista Mariana Santos, uma das líderes das Chicas Poderosas, pontua que as empresas jornalísticas precisam adaptar seus modelos de gestão para abrir mais espaços de liderança para mulheres, pessoas trans e indivíduos não binários. O resultado será um jornalismo que contribuirá largamente para a construção de sociedades mais inclusivas.
Se os sistemas de inteligência artificial como instrumentos de mediação do jornalismo são uma tendência, vale questionar: como será o jornalismo para além das contínuas inovações de inteligência artificial e similares? Como será a relação entre jornalismo e jornalistas com as novas gerações de públicos? O relatório Next Gen News reforça aspectos sobre audiências, conteúdos e propõe, na perspectiva de um jornalismo em 2030, ações como construção de afinidades com a audiência, ampliação da oferta de experiências personalizadas, modernização da linguagem, entre outras.
O jornalismo de 2025, para além da inteligência artificial, terá que se reconectar como as diferentes facetas de seu campo. Terá que atuar também aquém do hype da IA, pois estes sistemas estarão presentes de qualquer forma, mas não serão protagonistas e nem determinantes. Serão, sim, ferramentas que alavancam o jornalista e seu trabalho.
Este texto faz parte da série O Jornalismo no Brasil em 2025. A opinião dos autores não necessariamente representa a opinião da Abraji ou do Farol Jornalismo.