Enfrentamentos mercadológicos serão desafios à regulação das plataformas em 2024
Em 2024, falta de consenso e interesses econômicos apontam para um cenário desfavorável à regulação das plataformas no momento em que o jornalismo busca novas formas de diálogo junto às comunidades
Até pouco tempo atrás, a centralidade midiática na vida social possibilitava ao campo jornalístico — e seu modelo de negócios então vigente — uma sustentabilidade calcada na aliança com o mercado publicitário, tendo em vista a credibilidade da instituição jornalística no contexto social. O jornalismo se posicionava como um lugar ideal para que os anunciantes pudessem agregar valor junto aos seus públicos de interesse. Para além disso, situava-se como um palco de visibilidade em que os produtos e serviços poderiam ser acessados imagética e simbolicamente, preparando para o consumo direto através da persuasão.
No Brasil, tal modelo favoreceu a concentração do mercado em poucos conglomerados. No passado, os Diários Associados reinaram por um bom período. Posteriormente, as grandes corporações como Globo, Bandeirantes, SBT e outros em nível nacional, além de poucos grupos regionais, continuaram com a concentração excludente e interveniente no processo de formação de público e da opinião coletiva dominante.
A ruptura do modelo de sustentabilidade negociada diretamente entre anunciantes e meio de comunicação veio se dar nos últimos anos, com a transformação paulatina dos modelos de negócios das plataformas digitais — estruturas tecnológicas mercadológicas que negociam tudo e todos que se aventuram em seus espaços.
No passado, os anunciantes escolhiam os lugares, os programas, os jornais e telejornais onde iriam anunciar. Hoje, o contrato é bilateral entre anunciante e plataforma que, por sua vez, determina, a partir de uma arquitetura algorítmica da visibilidade, onde a logomarca e os produtos de cada anunciante irão parar. Do mesmo modo, os milhões de criadores de conteúdo, também acordam com as plataformas para monetizar sua produção, a partir da adesão às estratégias de marketing que elas disponibilizam em suas centrais de negócios. Alphabet possui um modelo distinto da Meta e em cada uma delas vamos observar diferentes formas contratuais. Contudo, com algumas questões comuns, como a abertura para a monetização a partir de critérios que podem, inclusive, atingir a recomendação e/ou que podem ser potencializados com impulsionamentos.
No Brasil, assim como em boa parte do mundo ocidental, o jornalismo encontra-se em suspeição, como revela o Digital News Report 20221 no que concerne ao consumo de mídia em nosso país, tendo em vista que 54% dos brasileiros evitam as notícias. Entretanto, os meios “tradicionais” do campo jornalístico e o próprio jornalismo, embora estejam em processo de desconfiança social, ainda fazem parte da dieta de mídia de uma parcela considerável da população que acessa as redes digitais e, portanto, ainda mantêm um público cativo, sobretudo, como lugar para desconstrução de narrativas desinformativas.
No contexto das plataformas digitais e suas redes sociais, o jornalismo é um vetor de atração para atenção dos usuários, o que interessa potencialmente aos grandes conglomerados tecnológicos que hoje comandam a bios virtual. Para se ter ideia do mercado da informação nas redes sociais digitais, basta olhar para o número revelado pela pesquisa TIC Domicílios 20212, a saber: cerca de 70% dos brasileiros procuram a internet para se informar sobre algum fato sobre o qual precisam ter informações precisas, o que os leva comumente ao conteúdo de cunho jornalístico Muitos preferem o popular dar um google, enquanto outros vão para redes sociais como Facebook, Instagram, TikTok, Kwai, dentre outras.
O tema da remuneração do jornalismo por parte das Big Techs encontra-se na pauta das negociações em torno dos processos regulatórios em vários países. No Canadá, o Online News Act aprovado em junho e que deve entrar completamente em vigor até o final de dezembro de 2023, traz em seu escopo a determinação de que as plataformas atuantes naquele país devem pagar pelo conteúdo jornalístico veiculado em seus espaços. Contudo, o modelo de negócios das plataformas não inclui monetizar ou pagar de forma ampla direitos de autor em quaisquer âmbitos, pois lucram muito com a livre circulação de conteúdo em seus domínios. Nesse contexto, de iminência e possibilidade real de remuneração direta à produção jornalística, a Meta retirou todo o conteúdo jornalístico de suas plataformas naquele país. Em resposta, o governo canadense retirou toda a publicidade legal governamental das plataformas Facebook e Instagram. Já a Alphabet/Google anunciou recentemente que seguirá o caminho da Meta, eliminando os atalhos do motor de busca para conteúdos jornalísticos e, portanto, deixando aproximadamente 90% dos canadenses que procuram informações através do Google, sem acesso direto a este tipo de conteúdo. O objetivo de ambas as corporações é colocar a sociedade canadense contra o governo e sua proposta de regulação.
No Brasil, a questão em torno da remuneração jornalística esteve inserida inicialmente no Projeto de Lei 2630/20, conhecido como PL da fake news, mas que trabalha em um escopo bem mais abrangente e tem como foco principal a transparência das condutas das plataformas no que se refere, principalmente, à recomendação, impulsionamentos e monetização de conteúdos. Além de responsabilização em caso de acolhimento, recomendação, impulsionamento e monetização de desinformação e discurso de ódio que podem provocar risco sistêmico, para além da vigilância e mineração da experiência humana, dentre outras questões complexas.
Após intenso debate e a falta de consenso em torno da questão, como também em face do lobby das corporações junto aos parlamentares e a veiculação de peças publicitárias das plataformas para o público em geral, com o intuito de desqualificar o projeto de lei e colocar a sociedade contra a proposta de regulação, a remuneração do jornalismo terminou saindo da pauta do PL 2630/20 e migrando para o PL 2370/19, que trata do pagamento de direitos autorais a artistas e agora também ao jornalismo, por veiculação/reprodução de conteúdo no ambiente das corporações digitais.
Vale destacar que também não houve consenso junto à sociedade civil, tendo em vista que para nós, dos movimentos sociais e academia, a remuneração específica para grandes grupos de mídia, não interessa. Por outro lado, é preciso ter clareza sobre o que é conteúdo jornalístico e não cair na cilada da estética, dos processos e das práticas que podem muito bem ser pontes para a desinformação, como temos visto em nosso país.
Vale ressaltar, como dito acima, que em maio de 2023, as big techs produziram desinformação junto aos seus públicos sobre o Projeto de Lei 2630/20. Tanto a Alphabet como a Meta veicularam em suas principais plataformas mensagens que desinformavam sobre o projeto, com o claro intuito de intervir no processo de aprovação da legislação no Brasil. O lobby/advocacy de tais empresas é “pesado” junto ao Congresso brasileiro que possui, inclusive, uma grande bancada de Parlamentares no Senado e na Câmara, eleitos a partir da prática da desinformação, que é muito bem recompensada no modelo de negócios das plataformas. A Alphabet/Google, nesse meio tempo, contratou o ex-presidente Michel Temer para intermediar as negociações em torno dos projetos que a envolve.
No momento em que escrevo este artigo, início de novembro de 2023, os dois projetos de lei mencionados acima, que deveriam ter retornado à pauta desde agosto, ainda se encontram parados e pelo “andar da carruagem” é bem provável que não sejam aprovados a tempo para enfrentar 2024. Portanto, mais uma vez o TSE deverá impor resoluções para evitar que a desinformação mantenha alto grau de influência nos destinos do país e novamente o jornalismo trabalhará sem ser remunerado no ambiente digital.
Enfim, diante do cenário descrito acima e do fato de que no próximo ano teremos eleições municipais e dos interesses dos parlamentares frente às suas bases, ademais considerando que possuímos hoje o Congresso mais conservador de todos os tempos, como também os grandes interesses econômicos envolvidos, não vislumbro um fechamento da questão de forma fácil, rápida e favorável ao jornalismo, que precisa reconquistar público e criar novas formas de diálogo com as comunidades informativas, a fim de potencializar o trabalho proativo para mitigar o fenômeno da desinformação e suas graves consequências na sociedade brasileira.
Este texto faz parte da série O Jornalismo no Brasil em 2024. A opinião dos autores não necessariamente representa a opinião da Abraji ou do Farol Jornalismo.
Relatório publicado anualmente pelo Instituto Reuters e Universidade de Oxford.
A Pesquisa TIC Domicílios é conduzida pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br) – do Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.br), vinculado ao Comitê Gestor da Internet (CGI.br)